quarta-feira, 23 de abril de 2008

Três histórias e uma obra ainda não lida




Voltei a ler um livro que estava num canto há tanto tempo que havia até esquecido onde ele estava. Às vezes acontece isso comigo: começo um livro, paro por um período de lê-lo e o retomo até terminá-lo, com um significado bem diferente de quando comecei.

Ainda hoje estou com o Zen e a arte da manutenção das motocicletas, de Pirsig, encostado (quase no seu fim) numa estante daqui de casa. Apesar de não ter entrado tanto quanto um amigo meu na trip do cara da história, esse livro marcou minha chegada nessa cidade onde moro há quase 4 anos, seja lá o que isso possa significar. Talvez significasse mais se tivesse parado na Divina Comédia de Dante, especialmente no livro que fala dos cones do inferno. Alguns entendem por que.

Mas o livro que retomei é outro e ele só serviu para, além do mote de início desse texto, me relembrar três outras obras que li em fases bem distintas dessa vida de ali e acolá. A primeira é O processo de Kafka.

Este li quando tinha uns 13 ou 14 anos e ainda achava que o rock inglês era uma das melhores coisas do mundo. Ainda morava em minha cidade natal e ficava besta com a literatura, além da música do The Cure e dos Smiths, é claro.

A história de Joseph K, seu absurdo, a falta de sentido cada vez maior que sua vida vai tomando me deixaram impressionados e com uma sensação de choque com seu final, em que ele é assassinado, o qual reproduzo aqui:

“- Como um cão – disse K.

Era como se a vergonha devesse sobreviver a ele”


Em outra fase, e ainda morando na mesma cidade, ouvi a música do Cure, Killing an arab, e tinha lido em algum lugar que esta canção tinha sido influenciada por uma obra de um autor franco-argelino.

Lá fui eu atrás da obra que influenciou Robert Smith. Chama-se O estrangeiro. Seu autor: Albert Camus. Descobri que uma professora aposentada tinha o livro e fui até sua casa, super nervoso, tímido atrás dos óculos de lentes verdes (os famosos “fundos de garrafa”), e o pedi emprestado. Sob promessas de cuidados, saí tão contente quanto Clarice naquele conto da Felicidade Clandestina.

O interessante é que reli O Estrangeiro anos depois, sem lentes verdes nem óculos nem na mesma cidade, mas a sensação que tive quando o li da primeira vez permaneceu, inclusive do cheiro que o papel trazia, o mesmo cheiro que me acompanhou quando li Dorian Gray, da coleção da mesma professora.

A história de O Estrangeiro é até simples: um homem absolutamente comum (Meursault) numa praia, sob o efeito da luz forte do sol, mata um árabe, sem motivo aparente, é preso e tem sua conduta diante da vida devassada, o que acaba por mostrá-lo como um ser cruel, tão cruel que se recusou a ver a mãe morta sob a tampa da caixão, entre outras coisas.

Camus, assim como Kafka, flerta com o absurdo, e essa sua obra, curta, certeira e com belos diálogos também tem um final que ainda hoje ressoa em minha cabeça. Ei-lo:

“Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio”

Sempre imaginei esse final com o personagem encolerizado berrando alto cada palavra, tomado por um ódio sem nome. Não à toa não o esqueço.

A terceira e última obra que citei é do colombiano Garcia Márquez. Li de cara o mais famoso de seus livros, Cem anos de solidão, e dois parágrafos são poucos para comentá-lo. O fato é que, depois desse, passei a ler outros mais e mais dele e, entre tantos que me marcaram a lembrança, ainda hoje a Crônica de uma morte anunciada é como um filme que tivesse visto.

Quando li essa obra, já fazia Letras em Recife e vivia (a cada feriado) pegando carona para o sertão junto com um amiga. Ainda é clara a lembrança da minha obrigação de ir dormir cedo para caronar a partir das 6 da manhã e o desejo de ir ao longo da narrativa que falava da estranha situação de Santiago Nasar, de quem todos, ou quase todos, sabiam que ia morrer, mas nada foi feito até acontecer o já anunciado.

É autenticamente de cinema a descrição da corrida dele até a porta que o salvaria e que, naquele instante, sem que se soubesse do que viria, estava sendo fechada.

Este livro, assim como os outros, pede sua leitura na íntegra, até porque, e só me dei conta disso enquanto escrevia esse texto, guardam a estranha semelhança de apresentar homens comuns colocados sob impasses que os levam à sua execução. Dos três, esse final é o mais cru, e não menos cruel:

“Tropeçou no último degrau, mas se levantou imediatamente.’Teve até o cuidado de de sacudir com a mão a terra que ficou em suas tripas’, disse-me tia Wene. Depois entrou em sua casa pela porta dos fundos, que estava aberta desde as seis horas, e desabou de bruços na cozinha.”

Ah, o livro que estou retomando a leitura é de Camus também. Chama-se A Peste.



















quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

A voz anasalada de Bob Dylan



Não gostava da voz de Bob Dylan. Por ouvir cantores de voz forte e potente, a voz pequena, fanhosa e às vezes desafinada dele me repelia. Ainda assim, me chamavam atenção as versões que fizeram de músicas suas, tais como It's all over now, baby blue, aqui vertida para Negro Amor, com a voz de Gal fechando os anos 70, ou na versão pungente de Jokerman cantada no Circuladô ao Vivo por Caetano.

Mas ano passado, depois de ter visto um documentário produzido por Scorcese, chapei não só na voz, mas em tudo o que há por trás dessa figura. O rosto anguloso, a expressão desolada ou distante, sem falar na postura de rejeitar titulações ou rótulos fizeram-no ser esse mito da cultura norte-americana a tal ponto de um ingresso, segundo li, mas não confirmei, custar 900 paus reais nos shows que ele fará em março no Brasil.

Todas essas características obviamente não são maiores que sua música. De recriador do folk a compositor de novas experimetações (rock, blues), Dylan conseguiu definir uma marca sem igual no modo como contar histórias, muitas vezes com imagens intensas, citações de casos reais (caso de Hurricane) e um modo de olhar as coisas que daí se entende porque certa vez o classificaram como a voz de uma geração.

De certo modo, entendo essa expressão quando ouço algumas de suas canções mais famosas e outras não tanto, como Desolation Row. Mas isso de ter me tocado pra grandeza de Dylan, a beleza de sua voz feia e anasalada e sua imagem de quando jovem veio naquelas canções aparentemente mais simples, mas que me deram a pista para entender o porquê dele ser a tal voz de uma geração, seja lá que geração é ou foi essa.

O fato é que, ao ouvir canções como It ain’t me, não há como não sentir alguma nostalgia de um passado que não vivi. Tenho ouvido Dylan cada vez mais e cada vez mais entendo tudo.

Em seguida a letra de It ain’t me. Tradução, no Google tem várias, mas melhor que ler é ouvir a canção.Ah, Cash fez uma versão dela.

It ain’t me

Go away from my window

Leave at your own chosen speed

I'm not the one you want babe

I'm not the one you need

You say you're lookin' for someonewho's never weak

but always strongto protect you and defend you

whether you are right or wrong

Someone to open each and every door

But it ain't me, babeno, no, no it ain't me, babe

it ain't me youre lookin' for, babe

Go lightly from the ledge, babe

Go lightly on the ground

I'm not the one you want, babe

I'll only let you down

You say you're lookin' for someone

who'll promise never to part

someone to close his eyes for you

someone to close his heart

Someone who will die for you and more

But it ain't me, babeno, no, no

it ain't me, babeit ain't me

you're lookin' for, babe

Go melt back in the night

Everything inside is made of stone

there's nothing in here moving

And anyway,

I'm not aloneyou say you're lookin' for someone

who'll pick you up each time you fall

to gather flowers constantlyand to come each time

you call a lover for your life and nothing more

but it ain't me babe

no, no no it aint me babe

it ain't me youre lookin for babe



quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Lista desordenada



Nunca curti listas de melhores músicas, livros ou filmes. Mesmo assim, sempre me vejo atraído por elas, tanto que comprei aquele tijolo chamado 1000 discos para ouvir antes de morrer e, confesso, achei-o ótimo.

Como tenho visto ( e revisto ) uns filmes nestes últimos dias, lembrei de cenas de outros que havia visto há anos e que ficaram presas à minha lembrança. Não sei se vou lembrar de todos os filmes e cenas que me vieram há três dias,mas os que mais me marcaram, por variadas razões, seguem abaixo, na minha lista sem culpa de cair nessa armadilha de preferências sempre tão subjetivas.

- Noites de Cabíria (Fellini)

Quem é ou já foi da minha intimidade sabe o quanto amo esse filme. Tem uma amiga minha que não chora à toa e me confessou que o viu em São Paulo, sozinha, e desceu uma lágrima tão resignada quanto as pequenas tragédias vividas pela Cabíria de Giulieta Masina.

A cena final dessa película, na qual ela, depois de mais uma desilusão, sai chorando lágrimas negras de rímel ( Caetano cita isso em uma música que fez para a atriz italiana) é de uma marca sem igual, tanto que, ao sorrir para a câmera, nos fala mais que a metalinguagem do cinema pode nos dar.

- Magnolia (P T Anderson)

As 3 horas cravadas deste filme valem cada cena e interpretação. Adoro Paul Thomas Anderson desde o longo traveling que abre Boogie Nights. Até o estranho Punch, Drunk, Love nos pega sem que a gente perceba e, o melhor, muito depois de tê-lo visto.
Em Magnólia, se eu falar da chuva de sapos (momento de intensa carga simbólica
e, porque não, divina) serei redundante. Se falo também da sequência em que todos os personagens-chave cantam a música de Aimee Mann estarei falando o óbvio.
Destaco a cena final, em que o policial apaixonado, após a tal chuva que muda tudo, fala para a garota junkie que quer ficar com ela e que vai ajudá-la, isso ao som de outra música de Aimee Mann não por acaso chamada Save me. Curiosamente, tal Cabíria na cena acima citada, a garota, chorando emocionada, também olha para a câmera e sorri.

- A Doce Vida (Felini)
Só vi esse filme uma vez e preferi não revê-lo e não o considero um mal filme.
A cena que destaco é de Mastroiani tendo de fazer a decisão entre a vida ( nada doce ) que ele levava e outra, mais pura. A escolha já se supõe qual é.



- Brilho eterno de uma mente sem lembrança (Michel Gondry)

Para um diretor fazer você torcer por Jim Carrey ele deve ser muito bom. Pois é o que acontece nesse filme de narrativa distorcida e história tão familiar a tanta gente que é impossível não se emocionar com ele.
A cena, ou as cenas, é ou são as da fuga pela consciência do personagem de Carrey depois dele desistir de deletar da memória a mulher que ama, ninguém menos que Kate Winslet. Uma pequena lição para os ex-apaixonados.

- Lucia e o Sexo (Julio Medem)
Haja símbolos nesse filme, mas a cena do reencontro de Lucia e seu amado,depois de uma separação longa, emocionou tanto ao ponto de causar choros altos de homens feitos no colo das namoradas no cinema.

- The Butcher Boy (Neil Jordan)
Sinead O’Connor interpretando Nossa Senhora só traz mais beleza a esse filme que mistura violência e poesia. Faz anos que vi e não o esqueço.

- Gritos e Sussurros (Bergman)

Um filme de terror, segundo alguns, por retratar o horror do medo, da solidão, da morte e do que mais for do humano.
Entre tantas grandes cenas, destaco a já óbvia citação à Pietá.

- The Fisher King (Terry Gilliam)

Vi esse filme há pouco e adorei o modo como cada personagem é apresentado. Todos muito diferentes, mas unidos pela loucura, solidão, carência e solidariedade.
As cenas da perseguição de Parry pela mulher que ama é de uma beleza sem igual, entre tantas outras, tão sutis nas mensagens que às vezes se perdem.

- Dancers in the dark (Lars Von trier)

A cena do trem, na qual Bjork canta que já viu tudo, é perfeita na cor, na coreografia e no olhar triste de Selma.

- Love and human remains (Denis Arcand)

Adoro esse filme, tanto ou mais até que Cabíria.
Se o amor está esfacelado, ainda resta a solidariedade dos que, desesperados, o buscam ou o rejeitam. Essa parece ser a mensagem da cena que fecha o filme.

-A Liberdade é azul (Krzysztof Kieslowski)

Não sei dizer qual cena específica,mas sempre me lembro da velhinha corcunda pondo algo no lixeiro ou da incapacidade da mulher em matar os ratos que estão em seu apartamento.

Lembrei de alguns de Almodovar, mas não tenho como destacar uma cena específica. Sempre me marcou aquela de A lei do desejo em que o diretor descobre que ama o assassino de seu amante, mas é tarde porque ele havia se matado. Passional e quase brega.
Em breve virão outras listas, nem sei sobre o que, mas sem ordem de preferência, tal como esta.





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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Le temps détruit tout



Vejo à minha frente um muro, vermelho. Mas o que menos importa é a cor. A forma, apenas faz o desenho do que vejo. No entanto, o muro é vermelho. Vejo o espaço em volta de mim. É apenas um espaço com tudo distribuído, de modo que cada coisa ocupe o seu lugar e assim eu possa saber que ali há, de fato, um espaço.

Porém tudo se distribui e assim se faz, sem que eu pergunte o porquê de cada coisa estar ali, ainda que meu coração pulse por sabê-las tão vivas e inteiramente dadas e sussurre, como para si mesmo, o que é cada coisa ali, no mistério de sua forma, a me observar enquanto as observo.

Olho para o firmamento e o que se espraia é puro azul e o azul é o que me eleva, pois o vejo tão amplo que sua luz intensa destrói as formas e redefine o espaço numa sensação de grandeza cuja medida é dada pelo que os olhos podem alcançar, e meus olhos, de tão poucas noções de longitude, se espantam, não com a distância que o céu espalha seu denso véu de cores múltiplas, mas com o reconhecimento dessa grandeza, a qual não pertenço e sei dela tão bem como se assim a fosse.

E penso que cada uma dessas coisas, assim tão naturalmente vistas, supera os nomes, mata o verbo, como se soubéssemos, eu e elas, que as palavras, às vezes tão necessárias, outras vezes são apenas tentativas frágeis de prender sensações maiores que elas mesmas ou fazer surgir significados e verdades das quais não conhecemos, ignoramos ou não queremos aclarar, ainda que presentes, pois não sabemos como lidar com algo tão grande cuja dimensão alarga os espaços e nos mostra, tão silenciosamente quanto um muro alto que guarda algo precioso, que as sensações, sim, pedem palavras que as traduzam, mas que não podem ser ditas, ainda.

O Tempo, não o vejo, assim como ninguém o veria, mas sei que ele está ali, esmaecendo cores, enrugando olhos, corroendo paredes e dando outros matizes a roupas, livros, cidades e esperanças. Vejo o tempo fechar o ciclo de uns e abrir amplas possibilidades da existência a tantos outros.

Mas o que menos importa são as marcas do que vejo. O Tempo, este tão íntimo, que me assusta e me fascina com sua onipresença, como um Deus que, se não conhece a verdade, a detém em sua essência, o Tempo me fala coisas, redefine meus sentimentos em novas cores, matizando-as, não pelo desgaste, mas pela intensidade do que elas podem trazer.

E eis que o vermelho do muro, hoje vivo e intenso, amanhã pode estar lançado à sorte de, sob o toque sutil desse mesmo Tempo, estar esmaecido, quase morto de sua densidade. E eu, como assustado por já saber uma verdade, como um mistério sempre revelado, o olho com espanto ao ver que tantas coisas nascem, outras tantas morrem e outras se tornam fixas no signo da perenidade porque desconfio que aquilo que o Tempo trama, em seu silêncio de presença eterna, se fixa não nas formas, nem nas cores, nem nos limites do verbo, mas na grandeza intensa das sensações, essas que não nos pedem para chegar, porque sempre estiveram ali, e parecem não se ir mais porque não foram moldadas com os elementos da perda.

Sobretudo respeito o Tempo.

Palavra que nos falta





Li num texto de Octavio Paz que nós não falamos as coisas, mas as palavras que dizem as coisas. Isso me lembrou Saussure e sua velha teoria da arbitrariedade do signo, a qual o poeta mexicano não aceita muito bem por preferir a noção, muito platônica, de que há relação entre som e sentido.

Sem querer, Paz me trouxe um abismo que eu não mais visitava, o da impossibilidade de dizer as coisas, ou mais: o da impossibilidade de, ao falar as coisas, trazê-las em sua essência. Fiquei levemente angustiado porque sempre me parece que a palavra nos falta e não há outra forma de nos salvar.

Para Octavio Paz, grande poeta que foi, só os deuses dizem as coisas ( o sol, a água, a luz como se Deus soprasse e tudo assim se fizesse ). Nós, humanos, tão pequenos, ganhamos a graça de apenas nomear, dar forma, atribuir conteúdos àquilo que vemos e nomeamos, ou significamos.

Fico angustiado porque nunca chegaremos à essência das coisas, dos objetos, dos sentimentos porque o Ser de cada uma dessas coisas se sobrepõe ao verbo. Sabê-los, conhecê-los nos pede mais que um vocabulário rico; talvez nos peça um aclaramento de consciência maior do que ela nos dá.

Por ser poeta também, Paz já conhecia a resposta, talvez até melhor que os filósofos e os lingüistas. A poesia e seu universo não só servem para renomear as coisas, mas também para criá-las, assim como os deuses fizeram.

Um poeta, ao usar o verbo, não sobe às esferas celestes, mas faz descer ao seu mundo (e só dele ) a divindade que habita em cada ente que preenche os espaços físicos para, em sopro renovado, tornarem-se novos objetos, novas coisas, novas palavras, no universo da poesia.

Se a palavra falta, o poeta nos deixa o vácuo do silêncio ( este sim, por vezes tão eloqüente) e ele nos dirá mais que nosso olho vê e nossos ouvidos captam em verdade e beleza. Sem dúvidas, os poetas sabem do mistério.

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E um menino, de olhos arregalados, como quem se espantasse com a existência e seu brilho, perguntou:

- Mas o que há por trás das coisas? O que vem depois da destruição dos espaços e sua ordem?

E o poeta respondeu:

- O silêncio e sua verdade sem nome.



Ordenada e cerebral maneira de ser feliz

"E no entanto é preciso cantar / Mais que nunca é preciso cantar / É preciso cantar e alegrar a cidade"
(Marcha da Quarta-Feira de Cinzas - Carlos Lyra e Vinícius de Morais)
Como havia comentado em um dos textos anteriores, fui ao carnaval de Recife. Não que isto seja algo magnífico, até porque, como havia dito no mesmo já citado texto, não curto muito o empurra-empurra e a desordem naturais a essa festa. Mas, como sou contraditório ( “ o mais contraditório dos homens”, como dizia Gilberto Freyre ), lá fui eu, certo do que queria: me divertir. E, contrariando até mesmo as minhas expectativas, me diverti, sim.

O carnaval em Recife tem a vantagem de se mostrar estranhamente pouco comum ao que a gente pensa como carnaval. Há, sem dúvidas, as máscaras, as fantasias, os blocos, troças, o desregramento da carne e dos sentidos, e o que mais houver. No entanto, por vezes, parece ser uma conjunção de festas espalhadas em vários lugares, como se toda a diversão do ano se condensasse ali, naqueles dias, tanto que a gente esquece até se o sábado é domingo ou se a quarta de cinzas foi semana passada.
Não falo isso em tom moralista nem de desprezo; ao contrário, achei essa pletora de alegria ( salve, Caetano!) e essa caótica felicidade motivos suficientes para viver a minha ordenada e cerebral maneira de ser feliz se realizar.

Para isso, decidi minimizar pequenas raivas e inevitáveis contratempos. Pela minha fama de garoto-enxaqueca, isso parecia impossível, mas, glória da idade ou desejo de só sorrir, as poucas que vieram as diluí no suor derramado nas ladeiras de Olinda. Resultado disso tudo: um dos melhores carnavais que já tive.

Para mim foi um carnaval pra dentro, aquele que você curte as festas, revê as pessoas (carnavais servem para trazer o passado e enterrar histórias do presente também), brinca com quem brinca com você, mas observa num canto muito íntimo, só seu, indivisível, tudo a sua volta, com um sorriso de quem quer só celebrar o instante, sem pressa, nem agitação.

E foram assim todos os dias, sem pensar nos dias de antes, felizes, mas prevendo os que vinham, improváveis. O resultado já supunha ou esperava e, por esperar, não me machuquei tanto, e agora rio de tudo e agradeço a Deus por ter tido dias tão calmos e meses tão bons, tanto que isso se refletiu na minha cara e nos comentários de meus velhos amigos que falaram que eu estava diferente, mudado. Não me atrevi a perguntar se pra pior. Desconfio da resposta.

O fato é que o carnaval de esquecimento que foi este nas ruas velhas de Recife ou no sobe e desce de Olinda me marcou por ser exatamente comum, sem beijos, sem abraços e sem amores sem nome. Vi tudo o que queria e fiz tudo o que me propus. O que restou foi uma vontade de ficar ou de ter a saudade que nunca tive. E deu até pra me emocionar com o frevo cantado por Luis Melodia. Salve, Melodia!!!

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Tecer o luto


Para Fabio Pereira, André Dib , Diana Hagen e Eduardo Camponês
No Eclesiastes há uma passagem, muito famosa, na qual fala-se que há tempo para tudo. Sempre falo que respeito o tempo, seus movimentos ora sutis, ora apressados, suas inesperadas voltas e seus términos sem aviso prévio. Não à toa resolvi chamar esse despretensioso blog de temposobreaterra.

Penso nesse velho texto bíblico e vejo que, nos pólos que nos regem, por vezes tão dialeticamente dolorosos, estar na elaboração do luto é como encerrar uma intensa vivência para renovar outra. É como se houvesse o tempo de viver e o tempo de morrer, mesmo se estando vivo.

Curiosamente, vários amigos meus estão no processo de encerramento, todos de relações afetivas, algumas tão antigas que eles nem lembram com exatidão como começaram; outras, de tão recentes, parecem nem ter começado; todas, no entanto, com as marcas das dificuldades que se têm em fechá-las, em cortar as afinidades e afogar os prazeres e alegrias comuns que teceram os fios de cada uma delas. Talvez neste momento chega-se ao tempo de morrer.

Isso me lembra uma conversa que eu tive há muitos anos com um professor de Filosofia o qual, ao falar sobre a morte em Ser e Tempo, do filósofo alemão Heidegger, dizia que sempre nos deparávamos, em nossa existência, com as pequenas mortes cotidianas. Era como, ele falava, experimentássemos a morte nas pequenas coisas que perdemos a cada dia, e isso me fez lembrar Bishop e seu belo poema Uma arte. E é assim que vejo também.

Relações afetivas ( acho melhor nomeá-las assim mais que amorosas ) almejam à eternidade em sussurros no silêncio do quarto, na observação calada do ser que a gente ama ou na simples alegria de ver quem a gente gosta chegar depois de horas ou dias sem se ver. Cada uma desenha-se na proporção dos sentimentos depositados, nos signos criados e desvelados pelo contato constante dos corpos e das palavras nem sempre ditas, às vezes mal ditas ou ditas sob o vazio da verdade que falta.

No entanto tecem-se, enredam-se os fios. Deles, surgem tecidos, ora nobres, ora frágeis, mas todos não menos definidores que ali criou-se, de fato, algo. Diante disso tudo, acreditar que um dia isso tudo morrerá seria pedir lucidez em excesso num terreno onde não há lógica nem razão, afinal os volteios do amor superam a cegueira que lhe atribuem ou a loucura que lhe persegue. Exige-se muita coragem para matar algo que nos fez tão bem.

E é isso que vejo quando falo com alguns amigos meus. Alguns não sabem definir se ainda amam o ser amado ( ou uma vez amado), outros os esquecem no discurso mas o rosto nega nas expressões cansadas, alguns simplesmente juram nunca mais se envolver com ninguém. Mas como saber?

Quem, sob armaduras de defesa, entra numa relação esperando que ela acabe ou dê errado? Não sei respostas para nada, mas desconfio que melhor que temer viver pelo medo da entrega ou da morte e seu sofrimento é melhor se jogar na entrega da felicidade que aquilo proporciona. Se isso se reverte em sofrer ou estar infeliz ou triste é porque só serviu para mostrar que o jogo dialético se movimenta dentro das expectativas do mundo e sob a ação do tempo. Talvez por isso que, mais doloroso que a morte de algo, o luto seja mais doloroso.

Falo isso porque tecer o luto é destecer tudo o que amor teceu. É como se cada fio, antes trançado de modo firme, agora tivesse que ser esgarçado, rompido e rasgado para gerar um manto cujos lados são o inverso do que houve.

Se antes existiram papéis largados ao acaso com frases de improviso, agora eles são guardados; se antes uma canção tocava o coração sob os efeitos das lágrimas, não a ouvimos mais; se os presentes, os perfumes, os gestos, as comidas, os caminhos partilhados mediam o tamanho do que se viveu, agora guardam-se os perfumes, esquecem-se os gestos, buscam-se outros caminhos, outros nomes, outros corpos ou a falta, nas cadeiras juntas na sala, ou na cama onde antes, no escuro, juraram-se eternidades sob beijos e silêncios.

Tecer esse luto dói, assim como toda morte ou perda do que amamos nos causa dor. Vejo meus amigos, e me vejo também como eles, e elaboro junto esse luto. O manto é longo, a fazenda é pesada, cheia de risos e boas lembranças que hoje causam dor, mas é necessário tecê-la, vivê-la, chorá-la para depois, como tudo que está sob o tempo, dobrá-la e guardá-la num canto da alma que nos lembra sempre que a proporção da dor do luto é a mesma que o prazer no qual foi vivida aquela história.

E depois é só reler o Eclesiastes e entender o mistério. No resto, nada mais doerá porque o tempo destrói, constrói e cura tudo, até do amor e sua morte.

E Viva Johnny Cash!!!



terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Outras trilhas sonoras de outros dias

Estou a caminho do carnaval em Recife. Não que adore carnaval, até porque multidões e empurra-empurra me deixam mais nervoso e tenso que o habitual. Não sei o que me espera e se soubesse, óbvio, não iria se fosse ruim e, pelo desejo que me rege neste instante, este não será um carnaval de mágoas nem melancolias, talvez de uma terna saudade.

Mas isso é assunto para o futuro, porque o presente, este que falo no momento que ele se esvai no percurso do tempo, tem sido feito de alegrias e medo de que a felicidade seja tão efêmera que só nos reste a tristeza como lembrança. e, como sempre, tenho ouvido muitas músicas, sempre associadas a essas fases, algumas muito ligadas a determinados fatos, outras sem relação com nenhum deles, mas todas servindo de trilha sonora dos dias.

Já havia escrito antes que tinha descoberto Jhonny Cash em uma versão ( se é que ali não é a máster de tão boa que ficou ) de Hurt do Nine Inch Nails. Depois disso, comprei vários de seus discos da série American, faltando, curiosamente, o lV que tem essa tal versão. No entanto, o lll trouxe outras que me chamaram igualmente a atenção.

Uma delas é That Old Lucky Sun cuja versão voz e violão de Cash me lembrou a que Ray Charles fez dessa música. Se alguém me perguntar qual a melhor, não saberei responder porque ambas são igualmente lindas e solenes em sua grandeza, ora pela letra religiosa, ora pela pungência da voz imperativa de Cash ou pela roquidão emocional de Ray.

No entanto, neste mesmo disco, nesses acasos de uma música que toca displicente e você a “vê” de outro modo, eis que surge outra cujos versos iniciais me chamaram a atenção de cara. A música se chama I see a darkness. Não sei se minha interpretação está equivocada, mas essa letra é uma bela declaração de amor na qual joga-se de modo aberto e sem chances de “faz de conta”. Ou será que estou enganado? Ainda fiquei intrigado com o darkness que ele vê e repete em seu refrão marcado por uma emocionada virilidade. Ouçam e tirem suas conclusões.

Bjork e o Sexo

Sempre falo, e vou continuar falando por um longo tempo, que, depois de Vespertine, Björk já podia ter se aposentado. Não que ela mereça a aposentadoria, até porque, tirando aquela trilha sonora feita para um filme do marido, ela é uma das poucas que não cedem aos apelos fáceis, seja lá o que esse chavão queira dizer. Para isso basta ouvir o Volta, de preferência de madrugada com o dia se abrindo entre luz e escuridão. Se tiver boa companhia para isso, então seja feliz. Quem o ouviu sabe do que falo.

Mas falo sempre de Vespertine porque ele é único, é o tipo de obra que marca tanto um artista que ele será sempre lembrado por ela. Os sons de harpas, barulhos sutis ( salve, Matmos !!! ), os sinos de caixas de música e o coro feminino criam uma sensação tão etérea que é como se, em cada audição, houvesse outro mundo surgindo ali, criando uma sensação de intimidade e introspecção. Não sei, mas acho que não estou exagerando, até porque as letras nos levam a isso. Tanto Hidden Place quanto Pagan Poetry são músicas que trazem todos esses elementos e tocam no amor de modo paradoxalmente carnal e transcendente.

Falar de sexo, para mim, sempre é delicado porque o cara que escreve, ou a mulher, neste caso, tem que saber o limite entre resvalar na grosseria ou ser sutil o suficiente que não agrida aos ouvidos mais pudicos, como os meus, acreditem. Faço esse comentário porque Björk consegue transpor a sexualidade de modo quase cru, mas não tão chocante que quebre essa frágil sensação de intimidade silenciosa que só os casais sabem quando estão no escuro de sua partilha, seja onde for.

Falo isso porque nesse disco há uma canção chamada Cocoon que trata exatamente disso. Bjork já havia falado de sexo em metáforas quentes em Possibly Maybe, do disco Post, mas em Cocoon há um clima de velada intimidade na qual os sussurros da cantora e a letra confessional sacralizam de tal modo o amor que quase não se percebe que ali há,de fato, uma relação sexual da mais intensa beleza.

Era para falar de Billie Holiday e seus discos finais, mas isso fica para pós carnaval.....

Sobre o Rio, meses depois...

Para Soraia B.

Em outubro fui ao Rio. E ir ao Rio sempre é uma experiência. Não falo aqui pelo que se ouve de lá, violência nos morros, morte ou quedas de barreiras. O Rio que falo aqui não é o da luz intensa e das montanhas (ou serras, nem sei) que rodeiam a cidade, e lhe faz o bem e o mal, nem é o Rio cantado pela Bossa Nova, o mar, o Cristo, o amor e a flor.

O Rio que falo aqui foi o que se construiu ao longo dos quase 7 dias que passei lá, um Rio de risos e lágrimas contidas, pouco sono e uma intensa vontade de viver cada mínima sensação com a certeza de que algo se revela, acenando para novas direções. Não fui sozinho. Me acompanharam 6 pessoas e suponho que cada uma, ao seu modo, voltou com a retina mudada não só pelas imagens lindas que viu.

Uma cidade como cenário.

A partida foi marcada pela excitação e o riso fácil. Todos estávamos empolgados demais com os planos de visitar os lugares certos, a praia certa, o sol exato. 32 horas de longo caminho sob sonos longos e profundos ou tudo o q pudesse enganar o fato de que não se podia fazer nada além de esperar o término para, enfim, podermos executar nossos planos de felicidade.

Executar planos, atingir metas, e tais metas eram medidas pelo desejo de, alguns, se sentirem donos de si, nem que fosse por uns dias; outros, apenas viver a experiência de estar na Cidade Maravilhosa. Mas o que me chamou a atenção não foi a cidade, nem sua luz intensa.

O que me chamaram a atenção foram os sinais sutis passados nos olhares, silêncios e euforias de cada um de nós. De fato, hoje, mais que antes, sei: nada do que se planeja tem o mesmo valor do que chega sem você saber. Isso parece frase feita de beira de jornal, mas, neste caso, especificamente, cabe, vale e se ajusta a cada coisa vista ou vivida por lá.

Não gosto de fazer programa de turista, tipo ir aos pontos aonde todos vão. Há amigos meus que estranham isso porque, pelo que se espera, é natural que, em lugares novos, e, no caso da cidade citada, lindos, se vá a cada lugar cujas fotografias só realçam as cores e os significados que eles têm, ou podem vir a ter.

Pois bem, nesta viagem resolvi seguir a trilha: Cristo, Forte de Copacabana, Ipanema, Lapa e, último dos lugares onde me encontrariam, Maracanã, lotado pelo jogo do Flamengo contra o Corinthians. Ainda para arrematar, praia de Copacabana com sua água gelada de espantar.

De toda essa seqüência de passeios, muitas marcas ficaram além das feitas pela pele queimada pelo sol dessa manhã de silêncios e estranhamentos. Na volta para casa, tão desejada, suponho, porque depois de dias fora do eixo, o corpo e a cabeça pedem mais rotina, observei cada um dos que foram comigo, inclusive me observei. Uns choravam em discrição, outros ficavam em longos silêncios eloqüentes, outros iam embora com a certeza de que amores nascem e alguns sentimentos não tão grandes são tão menores do que parecem que morrem antes mesmo crescer. Espero agora que os sentimentos, já fortalecidos, cresçam. Isso só tempo, como sempre, diz. Mas se tiver o Rio como cenário, melhor será.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

mais velho que no futuro

Às vezes falo com pessoas de 20 anos ou um pouco mais a respeito de coisas que eu via ou ouvia quando tinha a idade deles, ou um pouco menos, e me espantava (hoje não me espanto mais). O espanto vem porque eles não conheciam coisas tão familiares, pelo menos a mim. A negativa deles à minha pergunta sempre me colocava e ainda coloca na posição de saber, sim, que não sou mais tão novo. Confesso: estou em crise, entre tantas, e a que se instaurou há um tempo me joga no centro da minha idade.

Não sei se isso é porque convivo com gente mais nova que eu ou porque meus amigos não demonstram sinais de tal crise. O fato é que me vejo mais velho que no futuro e isso tem me colocado o impasse entre aceitar a bela maturidade ou ter a chamada “alma jovem”. Isso para mim é de certo modo uma bobagem; alma jovem não adianta muito se o corpo não reflete a intensidade da juventude, e ser maduro, muitas vezes, não depende de o cara ser velho. Conheço gente nova que dá de 10 em muitos que se aventam a afirmar-se como senhores da razão.

Falando assim, no entanto, parece que estou no lamento de quem não tem mais o que fazer a não ser esperar a morte chegar, como dizia Raul Seixas. Pelo contrário. Na mesma proporção em que me espanto com o tempo passando ao ver que tanta gente não conhece o que vivi, vejo que algo se constrói: a minha vivência, aquilo que me faz me sentir mais experiente ou mais seguro em relação a alguns aspectos da vida.

Certa vez, falando com uma amiga, ouvi dela que éramos da geração X, segundo ela aquela geração que estava no meio termo entre ser adulto, e assumir uma vida como tal, ou ainda estar sob os efeitos da adolescência. Eu me identifiquei total com isso. Como nunca me vi muito adaptado às obrigações adultas, sempre estive no limiar dos que não sabem se compram um carro ou se casam, ou ainda se apenas gastam o que ganham com cd’s, tênis, livros e nada que possa indicar que, enfim, há responsabilidades totais de adulto.

Não sei se isso tudo é reflexo dessa tal crise ou se tem a ver com o fato de que minha geração cresceu sob outras expectativas, bem diferentes da geração de meus pais, na qual ou se tentava mudar o mundo ou se adaptava a ele muito facilmente, vivendo, como cada um podia, aquela seqüência se-formar-casar-ter-filhos-um-bom-carro-e-uma-boa-casa.

A minha geração, não inteiramente, é óbvio, optou por não mudar nada e redefinir a seqüência, valorizando mais a experiência e sem grandes apegos a noções de eternidade. Daí que, livres, as responsabilidades recaem sobre quem as decide viver na sua liberdade e nas inúmeras opções que a vida pode ter. Talvez hoje case-se menos, ou separe-se mais, porque não haja tantas necessidades de se viver uma vida mais “fechada”.

O fato é que se envelhecer é sinalizado pela intolerância a certas bobagens e não dar importância a tantas outras, estou, de fato, velhinho. Se envelhecer é saber que estou diante da clara constatação de saber que sou livre, como um amigo me falou há alguns dias, então estou envelhecendo sob os signos da liberdade culpada, aquela que nos deixa a mercê das próprias decisões, mas sem saber se elas são as melhores. Sei que isso gera um paradoxo, pois, afinal, espera-se que um cara de 35 já seja seguro o suficiente para responder a qualquer questão com a firmeza que o tempo, e a já citada experiência, nos dão.

Não tenho resposta a isto,mas resolvo o paradoxo afirmando que, diante de tanta liberdade, quero sobretudo aquela que me faz ver que posso errar muitas vezes, como se tivesse 17, e que nem por isso sou menos maduro, ou velhinho, seja lá o que isso possa ser.

sábado, 12 de janeiro de 2008

Correr para o salto





"O Céu abriga o recado / Que é pra eu me guardar / Mudanças estão por vir"
(Marina Lima, O Chamado)
08 vai ser o ano. Ou melhor: O ANO. E nem sei porque falo isso, mas tenho tido a clara vontade de que ele, de fato, assim seja.

Em 08 faço 20 anos “de carreira” longe de casa, 35 de vida e 4 de sobrevivência no sertão, mais sertão que nunca, menos simbólico que sempre. Definitivamente, Luiz Gonzaga hoje me soa menos saudosista que há, no mínimo, dez anos e as veredas do sertão de Guimarães Rosa me soam como uma memória afetiva do livro que não li.

Pelo menos concretamente, este ano já começou diferente. Fiz mudança de casa, entre o natal e o ano novo, me desfiz de coisas, rasurei outras e estou, aos poucos, aprendendo a lidar com o caos. Leia-se caos: casa-com-quase-tudo-fora-do-lugar.

Desta mudança, tão concreta, tão arduamente física ( meus braços e pernas doeram como se eu tivesse malhado dias em horas ) e tão refletidamente onerosa ( gasta-se para se deslocar, e como!!!), outras, estas menos perceptíveis, já senti.

A principal delas é como já não me grilo tanto com o fato de que as coisas estão fora do lugar. Quem me conhece há mais de 4 anos sabe do que falo, assim como também deve saber o quanto sempre prezei cada coisa que possuía. Não que as despreze, mas, ao que parece, com exceção de uma outra coisa aqui e ali, nada me faz tão mal se eu me desfizer dele ou se não estiver mais comigo.

Lendo assim o que escrevo certamente pensarão que isso é jogo retórico ou um papo revista Claudia, de tão piegas que parece ser. A verdade, no entanto, é que, ao invés de enumerar planos-de-janeiro-para-o-ano-inteiro eu resolvi observar o passado a partir do presente. Ver tais mudanças aclaradas em coisas tão físicas, às vezes ásperas, me dão a dimensão de outras que, cabendo ou não nos planos de janeiro, podem me ajudar em saltos maiores do que minhas pernas doloridas pelo peso dos móveis carregados desejam dar. Agora é só exercitá-las o suficiente e correr para o salto.