terça-feira, 8 de setembro de 2009

Do mistério




Bendito

Adélia Prado

Louvados sejas Deus meu Senhor,
porque o meu coração está cortado a lâmina,
mas sorrio no espelho ao que,
à revelia de tudo, se promete.
Porque sou desgraçado
como um homem tangido para a forca,
mas me lembro de uma noite na roça,
o luar nos legumes e um grilo,
minha sombra na parede.
Louvado sejas, porque eu quero pecar
contra o afinal sítio aprazível dos mortos,
violar as tumbas com o arranhão das unhas,
mas vejo Tua cabeça pendida
e escuto o galo cantar
três vezes em meu socorro.
Louvado sejas porque a vida é horrível,
porque mais é o tempo que eu passo recolhendo despojos,
– velho ao fim da guerra como uma cabra –
mas limpo os olhos e o muco do meu nariz,
por um canteiro de grama.
Louvados sejas porque eu quero morrer,
mas tenho medo e insisto em esperar o prometido.
Uma vez, quando eu era menino, abri a porta de noite,
a horta estava branca de luar
e acreditei sem nenhum sofrimento.
Louvado sejas!

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Do indizível





Explicação de Poesia Sem Ninguém Pedir

Adélia Prado

Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.

Do amor

Tenho lido Adélia Prado. Tenho ouvido Adélia Prado. Tenho, sobretudo, me emocionado com Adélia Prado.

Sem comentários, sem teoria. Só poesia:


Para o Zé

Adélia Prado

Eu te amo, homem, hoje como
toda vida quis e não sabia,
eu que já amava de extremoso amor
o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos
de bordado, onde tem
o desenho cômico de um peixe — os
lábios carnudos como os de uma negra.
Divago, quando o que quero é só dizer
te amo. Teço as curvas, as mistas
e as quebradas, industriosa como abelha,
alegrinha como florinha amarela, desejando
as finuras, violoncelo, violino, menestrel
e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito
pra escutar o que bate. Eu te amo, homem, amo
o teu coração, o que é, a carne de que é feito,
amo sua matéria, fauna e flora,
seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas
perdidas nas casas que habitamos, os fios
de tua barba. Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo
pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:
“Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas
o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não
ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros”.
Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama
fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.
Te alinho junto das coisas que falam
uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como
o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece,
tira de mim o ar desnudo, me faz bonita
de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega,
me dá um filho, comida, enche minhas mãos.
Eu te amo, homem, exatamente como amo o que
acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando
os panos, se alargando aquecido, dando
a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.
Amo até a barata, quando descubro que assim te amo,
o que não queria dizer amo também, o piolho. Assim,
te amo do modo mais natural, vero-romântico,
homem meu, particular homem universal.
Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.
Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,
a luz na cabeceira, o abajur de prata;
como criada ama, vou te amar, o delicioso amor:
com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso,
me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles
eu beijo.

domingo, 7 de junho de 2009

dos acasos



Para Alice e Romero


Talvez já tenha acreditado em acasos ou acho que ainda acredito, não tenho certeza. Na verdade, não tenho pensado muito nisso, assim como não tenho pensado tanto em coisas, por assim dizer, tão sérias. Talvez vivê-las seja mais simples, mas também não sei se isso é uma certeza ou se é um chavão velho, gasto, feio e brega. Mas o acaso, ou seja lá que explicação se dê para isso, às vezes me prega peças. E eu adoro.

Há meses, ou seriam anos, entrei numa livraria e fui atendido por uma menina, delicada, sinceramente educada, e o que mais o particípio possa me dar. Seu nome me ficou gravado na memória. Há aproximadamente 8 meses reencontrei esta menina, o que não me deixou de ser uma surpresa, pois ela passou a ser minha aluna. De pronto disse seu nome e, se a memória não me cria uma cena de filme, falei sobre o livro que procurava quando fui atendido por ela naquele dia perdido no passado. O livro era Cem anos de solidão, de Garcia Márquez, que eu buscava para presentear um amigo.

Essa menina era feita de silêncios, e pessoas silenciosas para mim se tornam enigmas, me olham, me perscrutam, viram uma esfinge. Ela sentava no canto e eu sempre fui meio temeroso em lhe falar. Podia feri-la, atiçar seu instinto crítico ou me expor ao ridículo em alguma palavra simpática que lhe lançasse, afinal pessoas do silêncio são imprevisíveis em seu mistério.

Continuamos assim, simpáticos um ao outro,mas distantes, até que um dia vi um verso de Bishop que adoro, retirado de seu poema Uma arte ( já posto aqui ) e colocado no perfil do Orkut dela. Nisso, encontrei um fio e o puxei: era a poesia. Falei a ela de Orides Fontela, poeta de palavras curtas, ás vezes ásperas, e sempre profundas, e assim criamos um canal mediado pela palavra poética. Emprestei a ela a obra completa dessa poeta, ela me devolveu com um delicado origami de cisne, até hoje guardado na página onde ela deixou, porque não sou de destruir delicadas gentilezas. Ia lhe levar Celan, na falta de outros poetas metafísicos e tive uma surpresa: ela havia trancado o curso e se mudado, para longe.

Curiosamente, passamos a nos comunicar na virtualidade, esporadicamente, tratando de temas comuns a nossos gostos, tais como: música e poesia. Ou seja, se nos faltava algo para falarmos ou nos aproximarmos quando nos víamos quase todos os dias, talvez por uma timidez insuspeita ou os temores que falei acima, agora, a quilômetros distantes, trocamos as sensações e impressões que livros, poesias e canções nos causam, talvez numa forma de compensar o silencio de duas almas tímidas que se cruzavam tanto nos corredores da universidade.

Não sei se foi um acaso que fez nos encontrarmos, na loja, e, tempos depois, na universidade, mas desse (re)encontro surgiu algo que é sutil,leve, especial e que não tem um nome definido. Não sei quantos irmãos ela tem, nem quais planos ela traça para seu futuro. O que sei é que, comigo, muitas de minhas boas amizades só surgem no contrafluxo de um encontro, tal como esse, iniciado num dia distante de uma livraria qualquer no meio de uma cidade sabe Deus onde fica.

Foi assim também com um rapaz o qual vejo pouco, quase não tenho falado, mas que surgiu assim, quase ao acaso, e que passou por todos os percalços que alguém pode passar ao se aproximar de alguém tantas vezes duro como eu. Um dia, quando nos falamos pessoalmente, teve a sutileza de me falar sem palavras, me passando um livro como presente e, dentro dele, um poema de Bandeira que sigilosamente guardo.
Essas boas sensações descobertas me trazem descobertas de sensações que julgava não mais viver e isso fica retido em minha memória afetiva como se fosse um dia em que a gente se sente bem só porque recebeu uma carta de alguém que a gente não vê há tempos, mas que, de repente, o acaso, que nem sei se acredito, nos faz lembrar.

terça-feira, 17 de março de 2009

Elis 73


Para Severino José


A capa é simples, com bordas brancas e, no centro, uma imagem em preto e branco na qual se vê uma mulher sentada, rosto baixo, fechado em si, em meio àquele ambiente de intensa grandeza e paradoxal simplicidade. As mãos, em concha, estão uma ao lado da outra, num jogo de sombras em suas formas de veias e dedos firmes, com um contraste entre luz e escuridão no qual se realça mais o clima de introspecção. Na contracapa, a mulher está ainda sentada, o olhar em desafio, como uma esfinge.Nisso tudo, um detalhe: as mãos, quase unidas num gesto de tensão refletido nas veias.Quase uma pintura barroca. O fotógrafo: Jacques Avadis; a modelo: Elis Regina; a obra: um disco seu de 1973.

Penso que, muitas vezes, certos artistas não têm noção da grandeza que eles criam ao conceber certas obras e, nisso, penso em Björk, em Vespertine, ou nos filmes de Bergman. É como se a obra se tornasse algo tão transcendental em sua linguagem que a forma fosse apenas um meio de expressão e o artista o ponto criativo que apenas gerou aquilo que, de tão grande, não lhe é mais. Falo o mesmo desse disco de Elis.

Sucedendo um LP cheio de clássicos instantâneos ( Atrás da porta e Águas e março (versão 1)), o disco de 73 trazia algumas coisas, por assim dizer, estranhas: a expressão de Elis é fortemente séria, não há cor na capa nem na contracapa ( como se disse acima), contrastando com a capa do de 72, o mesmo dos clássicos já citados, uma capa onde se vê uma cantora sorridente sentada numa cadeira e cheia de uma expressão tranqüila de quem estava entrando em uma nova (e duradoura, como se viu depois) relação amorosa. Detalhe: o novo namorado/marido nesse disco de 72 não por acaso é César Camargo Mariano, o pianista que fez belos arranjos para o disco de 72, numa onipresença em todas as faixas. Só pra se provar que o amor pode render belas coisas que ficam registradas no tempo.

Não é só a capa que traz uma certa estranheza. A própria Elis comentou em uma entrevista, na ocasião do pós-lançamento desse disco de 73, que não era só o disco que havia mudado, mas a cabeça dela também. De fato, quem ouve o disco de 72 e quem passa pela experiência de ouvir o de 73 nota isso e percebe, mesmo nas sutilezas, que ela tocou num estado sublime de arte e produziu uma obra cuja dimensão supera a temporalidade. Mas isso é só minha opinião.

De qualquer modo, estão lá faixas como Oriente, na qual se percebe o tom grave que a voz assume na introdução e nos volteios que ela faz entre os timbres agudos, realçando a força da letra casando perfeitamente com os sintetizadores. Ou ainda há a tensão interpretativa de Doente morena, de Gilberto Gil, e O caçador de esmeraldas, de João Bosco e Aldir Blanc, essa última com citação de Lorca meio alterada e com uma letra perfeita entre passado histórico ( Fernão Dias desbravando o Brasil) e um casal que se amassa num fusca no Recreio dos Bandeirantes. São canções distintas, mas que se casam claramente com a voz e a contenção íntima que as letras pedem.

Estas músicas só se engrandecem quando se ligam a outras cuja intensidade é realçada pela sintonia sem igual entre a afinação de Elis (que, curiosamente, nesse disco está com um timbre mais agudo e indo a graves profundos), as letras (basta ver Agnus sei e perceber do que falo) e os arranjos. Além do capricho de César Mariano no piano, Paulinho Braga e Chico Batera dão aula de bateria e percussão (na já citada Agnus sei e em Comadre, entre outras) e Luisão conta historias com seu baixo. Cada um se mostra gênio naquilo que faz, seja na introspecção melancólica de Folhas secas e É com esse que eu vou (uma aula de divisão de frase ), seja no samba com jeitão de jazz que é meio de campo (ouvi tanto essa música pra perceber seus detalhes que temo abusá-la).

Tenho ouvido esse disco esses dias com fones nos ouvidos e fico impressionado com as nuances dele e com a respiração exata de Elis nos momentos de modular e dividir as frases musicais. Não por acaso ponho esse texto hoje aqui porque, se estivesse viva, Elis faria, neste dia 17, 64 anos.

Fico sempre pensando que, se ela estivesse ainda por esse mundo, o que cantaria. Imagino que sua voz já teria ido a regiões impensáveis do som, pois quem ouviu seus últimos discos sabe do que falo. Ainda assim, por outro lado, penso que se toda sua discografia fosse ruim ( o que é impossível de ser ) ou pequena, ela já teria alcançado Deus só com essa pequena obra cuja importância supera até mesmo o sempre histórico Elis e Tom. Quem não os ouviu, ouça. Garanto que não vai mais esquecer.

terça-feira, 10 de março de 2009

carnaval,leite, frango com ameixas e uma casa divertida











Uma amiga, de quem gosto muito, me falou que não entende o porquê de eu ter ido ao carnaval de Recife este ano, gastado uma passagem não tão barata, ter dispendido dinheiro em comida e comprado coisas que poderia comprar de longe, pela net, e não ter ido, de fato, às folias da cidade. Bom, com ela dei risada e tentei, em vão, argumentar que não é extremamente necessário ir a todos os lugares, estar no meio de todas as pessoas e em todos os momentos. Não saí tanto quanto se espera por opção, e acho isso absolutamente normal.

De qualquer modo, compreendo a incompreensão dela, pois todos pensam que, indo a uma festa, você deve conhecê-la, ou vivê-la, com tudo o que ela tem a oferecer e, no caso do carnaval, aliviar os apelos do corpo. No meu caso, a festa é de outro modo e funciona, sim, no meio da multidão, mas tendo muito mais o prazer do reencontro de gente que não vejo há tempos ou de afetos agora resgatados. Simbolicamente, este carnaval foi feito mais pela efusiva força que as mensagens do silêncio têm do que das músicas alegres do centro de Recife. Até porque a chuva e a gripe me ajudaram a ficar assim.


E foi por causa da chuva, da gripe (que me obrigou a ficar em casa, fugindo da chuva) e de uma preguiça de feriado longo que acabei me deparando com livros, cd’s e filmes (muitos filmes ) de um amigo, dono do apartamento onde fiquei.. Daí que, entre os shows e essas coisas todas, fiz uma negociação a qual a chuva foi a mediadora. Nada melhor e mais equilibrado para quem não curte tanto enfrentar multidões e que não se sente suficientemente disposto a sair.

O resultado disso é que, no contrafluxo, fui parar no cinema com uns amigos e acabei vendo Milk e fui apresentado por meu amigo ( dono dos cd’s, filmes e livros ) a duas HQ’s que me fizeram mudar a idéia a respeito desse gênero. Além disso, ainda encontrei por lá uma compilação de entrevistas dadas ao Pasquim, feita apenas por cantores e músicos.

Neste livro, chamado O som do pasquim, li entrevistas que iam de Tom Jobim a Agnaldo Timóteo; de Luiz Gonzaga ( uma das melhores, na qual se deixa transparecer a admiração dos entrevistadores e a coerência do cantor ) a Waldick Soriano. É desse, inclusive, que há uma das melhores frases do livro: “a vida é uma constância de consequências de vários gêneros”. Adorei.


Sobre Milk, muito bom. Quando terminei de ver a projeção, fiquei imaginando quem no Brasil hoje teria uma representação gay ou será que alguém ainda acredita em Marta Suplicy? Nunca acreditei muito e depois do episódio Kassab....

Vi no filme as passeatas pela luta dos gay rights e penso hoje onde se encontram aqui (e no mundo, desconfio) paradas que tenham minimamente um traço político. Sem dúvida, ver Milk dá noção de certas dimensões: de onde nasceram os direitos hoje conquistados e o vácuo ideológico que todos vivemos.

Mas nesse carnaval de tão poucas agitações, as HQ’s foram a minha grande surpresa. Confesso que li a primeira, Frango com ameixas, meio desconfiado, sem crer tanto naquilo. Escrito pela mesma autora de Persépolis, Marjane Satrapi, este livro fala da história de seu tio, Nasser, um homem muito famoso no Irã por tocar um instrumento de corda, chamado Tar. Este instrumento, herdado por ele de seu mestre, é quebrado pela esposa de Nasser num acesso de raiva.

A partir disso, a narrativa se desenrola num longo retorno do músico às lembranças de sua vida, desde jovem, quando conheceu e se apaixonou por uma moça cujo pai não aceitava o casamento por ele ser músico, até o presente, quando ele vê sua vida de casado, junto a outra mulher, que não ama, e filhos os quais ( em quase todos ) ele não se vê. Daí ao final, há uma decisão que ele toma. Óbvio que não vou falar dela aqui.

A outra HQ mexeu mais comigo. Se chama Fun home, numa ambígua referência a “casa divertida” ou “casa funerária”. O fato é que, ambas as denominações cabem à narrativa, escrita por Alison Bechdel, quadrinista norte-americana famosa por ilustrar tirinhas de conteúdo lésbico, Dykes To Watch Out For, e ganhadora de prêmios importantes nos EUA por essa casa divertidamente triste.

Me explico: tal narrativa trata da vida da autora e de sua família, focando especificamente em seu pai, professor de uma pequena cidade americana e obsessivamente fascinado em peças e móveis antigos, os quais ele restaurava. No entanto, isso é só um dado, uma parte mínima da intensa história que vai sendo contada. Eu imagino o quanto de coragem que ela teve em expor não apenas a si mesma, mas também a sua família, destacando e analisando a relação conflituosa entre ela e seu pai, numa oscilação de montanha-russa que, talvez, e isso é apenas impressão minha, só tenha se resolvido quando ela se descobre lésbica e descobre que ele era gay.

Apesar de muitos darem importância a este dado, eu vejo que há algo além desse eixo. É exatamente onde ela relaciona a vida e a morte do pai (um suposto suicídio ) a obras literárias, num senso de clareza e domínio de estilo, nos quais entram autores como Proust, Camus, Fitzgerald e o Ulisses de Joyce, e que fazem ver o seu pai como alguém que, de modo amargurado e defensivo, fez uma escolha que não necessariamente a que ele desejava (casar e ter filhos) e que via nela alguém que poderia fazer outra escolha, diga-se: abdicar de uma vida falsa, plástica e artificial, por outra, mais livre. De tudo isso, é tocante ver que, na fase pós-adolescente dela, a Literatura os uniu como uma ponte possível para compensar a distância deles. Isso é evidente nas belas passagens finais de sua obra.

Curiosamente, estas duas HQ’s me pareceram muito próximas, ainda que tratem de temas sutilmente distintos. Mas , ainda assim, estão lá, em ambas, a família, os filhos, um casamento fracassado e dois homens (os quais existiram) que desviaram a rota de suas vidas por motivos distintos, o que é perceptível quando se lêem as duas histórias. No entanto, os dois homens guardam profundas tristezas encerradas com a morte, voluntária ou não.

Sem dúvida, meu carnaval foi ótimo.


















quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

sutil e sofisticada melancolia




Enfim peguei meus cd’s de Antony and the Jhonsons.

Confesso que havia uma certa expectativa de minha parte em saber se o novo ( The crying light) superaria o I’m a bird now. Já havia ouvido o EP lançado no final do ano passado, Another world, e tinha gostado muito, pois, mesmo diferente do Bird, a sonoridade me atraiu, até porque lá estão o piano, a sutil e sofisticada melancolia de Antony e sua voz soturna (amo você, Filipe!!!), mas o CD, o inteiro, com outras músicas, só agora que recebi, e achava que só o receberia em março.

De qualquer modo, como uma religião, assim que os peguei, os cd’s, os abri com cuidado e esperei voltar pra casa das folias do Carnaval pra ouvir sozinho e com o som bem alto.

Já o fiz, hoje. Sem comentários.

Só sei que estou gostando e espero que quem lê esse blog tente baixar/ouvir os cd’s que falei. Valem a pena.

Detalhe: as capas de ambos ( The crying light e Another world) trazem Kazuo Ohno, bailarino japonês, maior representante do Butô/Butoh, tipo de dança na qual o corpo é a maior e única fonte expressiva. Na foto que está na capa de Another world, Kazuo Ohno ainda faz referência ao teatro, pois, ao lado dele, há uma foto emoldurada de Sarah Bernhardt, atriz francesa mais famosa do século XlX. Ou seja, Antony, não se limita apenas à música. Quem já viu os encartes de seus discos sabe do que falo.










sábado, 7 de fevereiro de 2009

Os modernos


Esses dias, lendo um dos capítulos de Devassos no Paraíso, livro no qual João Silvério Trevisan traça um vasto panorama gay no Brasil, desde a fase colonial até os dias que seguem, li uma frase que, afora sua simplicidade, me chamou atenção.

Vou transcrevê-la:

“(...) a permissividade de nossas sociedades autoproclamadas democráticas é uma fórmula diabólica graças à qual as pessoas encenam liberação para, na verdade, apenas tirar uma casquinha e, em última análise, não liberar nada.”

O mais curioso é que essa frase, fora do contexto dela, cabe à perfeição a um grupo que já venho notando há algum tempo e que, diferente daquele ao qual Trevisan se refere (ele fala das mídias e suas apropriações do universo gay), é traduzido por essa frase. O tal grupo é o que eu chamo de pseudomodernos ou os supermodernos.

Identificá-los não é difícil, pois eles estão soltos por aí, dispersos em shoppings, escolas, academias, universidades, bares (modernos e caretas) e onde mais possam ir. A sua modernidade se traça em roupas, cores, cabelos exóticos, marcas no corpo e muita atitude, seja lá o que isso for.

O discurso, ah o discurso, o mais radical possível, e se for efusivo, daqueles que todos têm de ouvir, pronto: você tem o mais moderno dos modernos, aquele que quer destruir o sistema (nem sei o que é isso....sistema parece ranço de estruturalista), que deseja romper as normas e que quer, acima de tudo, que todos (todos mesmo!!!) saibam que ele (ou ela) é moderno.

Daí que você vai ouvir que ele se droga pra caralho, que adora trepar com homens e mulheres, que fez várias tatuagens no corpo, que não liga pras tendências da moda e muito menos para as regras do mundo.

O discurso, o velho discurso.

No entanto, tal discurso se borra, as roupas se esvaem na falta de sentido quando esses autoproclamados arautos da ultra-liberdade moderna se dão de cara com fatos cotidianos da realidade.

Aí me lembro de um fato, curioso, que um amigo me contou há uns anos, de uma moça, linda, cantora, modelo, antenada com as coisas e que, ao descobrir que ele, o qual se interessou por ela um tempo, era gay ficou em choque. Em segundos a casca moderna se rompeu e ela inverteu seu discurso em acusações que beiravam a crueldade, segundo esse amigo que, por sinal, não vejo há tempos. Deve ter se protegido dos modernos e está em alguma montanha distante. O mais curioso disso é que ela, tão aberta às coisas do mundo, não concebesse que um gay possa se envolver com uma mulher. A modernidade ás vezes soa velha.

Ou outro caso, de uma moça que resolveu contar numa reunião de trabalho que era lésbica e todos ( modernos recifenses que adoram posar de nova-iorquinos blasé nos bares da Galeria Joana D’arc) fingiram naturalidade, quase fizeram um “yeahhhh”. No entanto, de saída de carona com um grupo, essa moça teve de ouvir um comentário nada moderno do tipo: “vamos embora logo, antes que aquela sapatão apareça”. Coisa de modernos. Lógico que o infeliz, ao vê-la no carro, se arrasou diante de sua máscara ter caído e se desculpou o máximo que pôde. Fazer o quê?

Acredito que, muitas vezes, essa forma de expor um discurso prafrentex pode passar pela necessidade de se integrar a grupos ou ambientes onde a tolerância seja a regra, nem que tal tolerância seja apenas um grande teatro. Daí que se criam lugares, bares, boates, festinhas de “gente esquisita” para onde muitos dos antenados vão. Fujo de todos esses. Talvez essa necessidade de afirmação também se dê em gente muito mais nova, ainda também que não seja garantia de que pessoas mais velhas não possam, ainda, estar sob a influência da modernidade de aparência.

Em relação aos mais novos, já me vem aquela sensação de leve pânico quando encontro algum pós-adolescente muito efusivo e, como falam, “alternativo”, pois nunca sei o que pode acontecer, se berram muito alto pra expor o quanto ele é simpático ou se vão falar de suas experiências recentes pra fugir do comum com uma ansiedade tão grande que as palavras mal saem da boca. Como já disse, o discurso, ah o discurso, às vezes pode escamotear preconceitos, falsear, daí que tem que ser muito bem dito.

Isso me lembra dois fatos, distintos, mas que definem bem estes tempos pós-modernos de palavras vazias e atitudes de teatro ou de surpreendente naturalidade sincera que muitas vezes a idade dá. Isto se deu com uma senhora, já idosa, por volta dos 80 anos, que adorava ver os netos com brincos e tatuagens porque achava lindo, ao contrário de sua filha, muito mais nova, que via naquilo um caso claro de viadagem. Ou dessa mesma senhora que trocava presentes e mandava biscoitos e queijo para a namorada da neta. Detalhe: ela nunca foi a lugares de gente linda e conectada com o mundo e muito menos tinha atitude, como já falei, seja lá o que isso for. Não sei, mas desconfio que um discurso mal ajambrado não resiste à maturidade e que certos jovens são bem mais velhos que a gente pensa.

Aí me lembro do outro fato, sem conexão com o que acabei de falar, de uma moça, muito jovem, moderna, efusiva, polêmica entre seus pares, que, ao ver uma foto de amigos, um ao lado do outro com distância de metros, e que estavam tomando banho num rio em uma festa cheia de jovens, modernos, super-modernos, mega-modernos, sexagenários, quase octogenários e cheirando a um ambiente muito família, soltou a seguinte pérola: “porra, bicho, parece sauna gay”. Não acreditando no que ouvi, fiquei apenas calado

Aí me veio aquele poema de Drummond, já bem conhecido, e com o qual muito me identifico. Ei-lo:

Eterno

E como ficou chato ser moderno.
Agora serei eterno.
Eterno! Eterno!
O Padre Eterno,a vida eterna,o fogo eterno.
(Le silence éternel de ces espaces infinis m'effraie.)
— O que é eterno, Yayá Lindinha?
— Ingrato! é o amor que te tenho.
Eternalidade eternite eternaltivamente eternuávamos eternissíssimo
A cada instante se criam novas categorias do eterno.
Eterna é a flor que se fana
se souber florir
é o menino recém-nascido
antes que lhe dêem nome e lhe comuniquem o sentimento do efêmero
é o gesto de enlaçar e beijar
na visita do amor às almas
eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo
mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma
força o resgata
é minha mãe em mim que a estou pensando
de tanto que a perdi de não pensá-la
é o que se pensa em nós se estamos loucos
é tudo que passou, porque passou
é tudo que não passa, pois não houve
eternas as palavras, eternos os pensamentos;
e passageiras as obras.
Eterno, mas até quando? é esse marulho em nós de um
mar profundo.
Naufragamos sem praia; e na solidão dos botos
afundamos.
É tentação a vertigem; e também a pirueta dos ébrios.
Eternos! Eternos, miseravelmente.
O relógio no pulso é nosso confidente.
Mas eu não quero ser senão eterno.
Que os séculos apodreçam e não reste mais do que uma
essência ou nem isso.
E que eu desapareça mas fique este chão varrido onde
pousou uma sombra
e que não fique o chão nem fique a sombra
mas que a precisão urgente de ser eterno bóie como uma
esponja no caose entre oceanos de nada
gere um ritmo.
(Carlos Drummond de Andrade)

Quero, definitivamente, ser antigo, quadrado e careta.

E que Deus nos salve dos modernos...






sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Tom Jobim


Para Joabe H. e Luis Osete , que adoram Bossa Nova.



Sim, o Rio de Janeiro continua lindo, o Rio de Janeiro continua sendo, o Rio de Janeiro ainda vai ser mais do que ele é quanto mais nos afastamos dele hoje e do que os próprios cariocas ( ou dos que vivem lá ) falam. Tipo: ame-o ou deixe-o.

Particularmente gosto da luz do Rio. Sempre repito isso aos meus amigos quando falo de lá. Acho que foi o que ficou mais marcado em meus olhos: uma cidade rodeada de serras ou pequenas montanhas e muita luz em volta realçando aquela opulência da natureza sendo manchada pela violência e inevitável deterioração.

Mas o Rio que acabou ficando na cabeça dos cariocas e no imaginário coletivo do país é o das calçadas de Copacabana, das praias, do amor, do sorriso e da flor. É o Rio que Tom Jobim forjou em suas melodias sem saber e é o que se sustenta quando nos afastamos dele ou vem num saudosismo do que não foi vivido quando o avião paira sobre a cidade e o Samba do avião volta à nossa mente.

Sem o Rio talvez a Bossa Nova não fosse o que ela é ou tivesse a importância que tem como expressão cultural (não musical, porque ela se sustenta sozinha). Isso que falo parece bobagem, mas acharia meio estranho que fosse Garota de Itapuã e não de Ipanema. Óbvio que a época, o momento e a esperança de um Brasil moderno na figura de Juscelino e suas intensas inovações ajudaram a forjar essa imagem, mas nem Brasília, nem a Bahia nem São Paulo seriam o melhor cenário das personagens e do estilo exposto pela sofisticação bossa novista do que o Rio.

E volto a Tom Jobim. Acho a voz dele enfadonha, feia e cansada. Mas nem todos devem ou podem cantar. O mesmo eu acho de Vinícius, grande poeta, iluminado letrista para forjar belas imagens para as canções (se bem que há coisas que ele fez que, acho, que seria melhor ser só poeta). Ambos, um na confecção das harmonias e outro na tessitura das palavras, deram aquilo que não se esquece e se cristalizou na memória afetiva de quem não é carioca, de quem não conhece tão bem a Bossa Nova e que nunca foi ao Rio. Na voz de quem sabe cantar, essas canções se tornam eternas.

E por falar em cantar e por falar em Tom Jobim e imagens cristalizadas, não se precisa ir muito longe pra saber de tudo isso. Basta ouvir o Elis e Tom, de 76, ou o disco que Gal fez só com canções dele e cujo único erro foi ser ao vivo. Nesses álbuns estão músicas que parecem feitas para embalar histórias de amor com muito sol, desejo de felicidade infinita e uma trilha que só inspira amar e ser amado.

Certamente, as mesmas pessoas ou o cenário que as inspiraram vieram do Rio e é esse Rio da saudade de um passado não vivido que sinto quando ouço essas canções de Jobim, sejam com letras de Vinícius ou não. E são essas mesmas canções que delinearam um amor moderno, sofisticado e solar (como era a juventude dourada que se reunia no AP de Nara ), assim como a Bossa Nova modernizou a música brasileira. Quem quiser entender isso tudo o que falo basta ouvir Corcovado, Fotografia, Ligia, Dindi, Pois é, Se todos fossem iguais a você e, óbvio, a trilogia da beleza: Derradeira primavera, Por causa de você e Eu sei que vou te amar. Ah, ainda tem Janelas abertas, ainda.

Não à toa, Elis pediu como brinde por 10 anos na Philips do Brasil (sua gravadora na época) um disco só com Tom, ao invés de um carrão super caro. Sabia da grandeza desse encontro.

E o Rio continua lindo...



1.75



Para André Dib, Geraldo Miranda, Filipe Bezerra e A. Fontenelle


Tenho um amigo que tem 1.97 de altura. Ele não é só alto, é largo, chama a atenção por onde passa. Além de tudo, é um cara doce e super inteligente, apaixonado pelas moças com quem namora e devotado demais ao sentimento por elas. Afora a inteligência e a simpatia, que lhe marcam, a altura, esse gigantismo em terra de pequenos, já foi (ou é, não sei mais) problema para ele, como no caso dos ônibus municipais, que ele ficava apertado entre um assento e outro, ou das portas cujos pórticos sempre eram baixos demais, ou certos carros em que ele, quase literalmente, ficava entalado, ou dos tênis de número 45 ( ou seria 46?) ou dos colchões tamanho especial.Vendo-o nessas situações, ou ouvindo seus relatos, tentava entender como é ser alto demais num mundo de estaturas médias. Eu só conheço o outro lado, o dos que são altos para serem baixos e os que são baixos demais para serem altos.

Fui ver um dos 5 shows de Madonna em dezembro, em São Paulo. Por mais que ao afirmar isso soe afetado, não tem nada tão forte quanto imaginar o valor simbólico de ir a um show muito produzido de alguém que, de fato, é um ícone vivo daquilo que representa. Isso, e só por isso mesmo, pode dar um sentido ao fato de se ir a um show como esse, porque se se leva em conta que, depois de tanta confusão para se conseguir ingressos tão caros, havia tickets por 10 00 na porta do estádio, é de se repensar o porquê de tantos atropelos e confusões. Ou seja, sábio é quem espera ou quem sabe esperar.

Ter visto esse show pode ter valido mais do que se eu estivesse mais integrado ou, num dizer mais direto, aterrissado lá, no gramado protegido do estádio do Morumbi. Depois de esperar em pé por tantas horas, acho que seis, e ainda estar meio out de tudo o que havia em volta (estou cada vez mais fora do ar, mesmo) só acordei para o show lá pelos 30 minutos iniciais. Me chamaram a atenção a referência aos anos 80 com ela pulando corda e de bermuda e quando, em She’s not me, ela desconstrói cada uma das madonnas que estão lá, cada uma representando uma fase, uma face, uma época, um signo. Semiótica pura: o ícone destruindo seus símbolos ali, a olhos vistos. Mais pós-moderno, impossível, e, paradoxalmente, muito verdadeiro por mostrar que ela mesma sabe o quanto nada é real ou nada é tão verdadeiro. Fiquei pensando nisso por um bom tempo.

Madonna é inteligente e se não fosse, ganharia minha admiração só por essa sacada sobre si mesma e o que ela é (ou não) para as pessoas.

Mas foi no show de Madonna que eu também me percebi como pequeno, baixinho, quase nada. À minha frente, um mar de cabeças e, como se elas não bastassem, as cabeças, havia ainda os braços levantados, inúmeros, com câmeras digitais na mão. Não contente em só fotografar (se eu tivesse tido a coragem de levar minha máquina, fotografaria também), as pessoas resolveram filmar o show. Ou seja: sem chance para os semi-altos de 1.75 como eu assistirem ao show sem ficar na ponta dos pés.

É daí que lembro de meu amigo, alto, muitas vezes em situações embaraçosas por ocupar tanto espaço e eu, ali, enquanto Madonna saracoteava, desejando também entalar em carros, bater a cabeça em tetos de ônibus e dormir atravessado em colchões pequenos para mim. Tudo para ter, ali, 1.97.