terça-feira, 10 de março de 2009

carnaval,leite, frango com ameixas e uma casa divertida











Uma amiga, de quem gosto muito, me falou que não entende o porquê de eu ter ido ao carnaval de Recife este ano, gastado uma passagem não tão barata, ter dispendido dinheiro em comida e comprado coisas que poderia comprar de longe, pela net, e não ter ido, de fato, às folias da cidade. Bom, com ela dei risada e tentei, em vão, argumentar que não é extremamente necessário ir a todos os lugares, estar no meio de todas as pessoas e em todos os momentos. Não saí tanto quanto se espera por opção, e acho isso absolutamente normal.

De qualquer modo, compreendo a incompreensão dela, pois todos pensam que, indo a uma festa, você deve conhecê-la, ou vivê-la, com tudo o que ela tem a oferecer e, no caso do carnaval, aliviar os apelos do corpo. No meu caso, a festa é de outro modo e funciona, sim, no meio da multidão, mas tendo muito mais o prazer do reencontro de gente que não vejo há tempos ou de afetos agora resgatados. Simbolicamente, este carnaval foi feito mais pela efusiva força que as mensagens do silêncio têm do que das músicas alegres do centro de Recife. Até porque a chuva e a gripe me ajudaram a ficar assim.


E foi por causa da chuva, da gripe (que me obrigou a ficar em casa, fugindo da chuva) e de uma preguiça de feriado longo que acabei me deparando com livros, cd’s e filmes (muitos filmes ) de um amigo, dono do apartamento onde fiquei.. Daí que, entre os shows e essas coisas todas, fiz uma negociação a qual a chuva foi a mediadora. Nada melhor e mais equilibrado para quem não curte tanto enfrentar multidões e que não se sente suficientemente disposto a sair.

O resultado disso é que, no contrafluxo, fui parar no cinema com uns amigos e acabei vendo Milk e fui apresentado por meu amigo ( dono dos cd’s, filmes e livros ) a duas HQ’s que me fizeram mudar a idéia a respeito desse gênero. Além disso, ainda encontrei por lá uma compilação de entrevistas dadas ao Pasquim, feita apenas por cantores e músicos.

Neste livro, chamado O som do pasquim, li entrevistas que iam de Tom Jobim a Agnaldo Timóteo; de Luiz Gonzaga ( uma das melhores, na qual se deixa transparecer a admiração dos entrevistadores e a coerência do cantor ) a Waldick Soriano. É desse, inclusive, que há uma das melhores frases do livro: “a vida é uma constância de consequências de vários gêneros”. Adorei.


Sobre Milk, muito bom. Quando terminei de ver a projeção, fiquei imaginando quem no Brasil hoje teria uma representação gay ou será que alguém ainda acredita em Marta Suplicy? Nunca acreditei muito e depois do episódio Kassab....

Vi no filme as passeatas pela luta dos gay rights e penso hoje onde se encontram aqui (e no mundo, desconfio) paradas que tenham minimamente um traço político. Sem dúvida, ver Milk dá noção de certas dimensões: de onde nasceram os direitos hoje conquistados e o vácuo ideológico que todos vivemos.

Mas nesse carnaval de tão poucas agitações, as HQ’s foram a minha grande surpresa. Confesso que li a primeira, Frango com ameixas, meio desconfiado, sem crer tanto naquilo. Escrito pela mesma autora de Persépolis, Marjane Satrapi, este livro fala da história de seu tio, Nasser, um homem muito famoso no Irã por tocar um instrumento de corda, chamado Tar. Este instrumento, herdado por ele de seu mestre, é quebrado pela esposa de Nasser num acesso de raiva.

A partir disso, a narrativa se desenrola num longo retorno do músico às lembranças de sua vida, desde jovem, quando conheceu e se apaixonou por uma moça cujo pai não aceitava o casamento por ele ser músico, até o presente, quando ele vê sua vida de casado, junto a outra mulher, que não ama, e filhos os quais ( em quase todos ) ele não se vê. Daí ao final, há uma decisão que ele toma. Óbvio que não vou falar dela aqui.

A outra HQ mexeu mais comigo. Se chama Fun home, numa ambígua referência a “casa divertida” ou “casa funerária”. O fato é que, ambas as denominações cabem à narrativa, escrita por Alison Bechdel, quadrinista norte-americana famosa por ilustrar tirinhas de conteúdo lésbico, Dykes To Watch Out For, e ganhadora de prêmios importantes nos EUA por essa casa divertidamente triste.

Me explico: tal narrativa trata da vida da autora e de sua família, focando especificamente em seu pai, professor de uma pequena cidade americana e obsessivamente fascinado em peças e móveis antigos, os quais ele restaurava. No entanto, isso é só um dado, uma parte mínima da intensa história que vai sendo contada. Eu imagino o quanto de coragem que ela teve em expor não apenas a si mesma, mas também a sua família, destacando e analisando a relação conflituosa entre ela e seu pai, numa oscilação de montanha-russa que, talvez, e isso é apenas impressão minha, só tenha se resolvido quando ela se descobre lésbica e descobre que ele era gay.

Apesar de muitos darem importância a este dado, eu vejo que há algo além desse eixo. É exatamente onde ela relaciona a vida e a morte do pai (um suposto suicídio ) a obras literárias, num senso de clareza e domínio de estilo, nos quais entram autores como Proust, Camus, Fitzgerald e o Ulisses de Joyce, e que fazem ver o seu pai como alguém que, de modo amargurado e defensivo, fez uma escolha que não necessariamente a que ele desejava (casar e ter filhos) e que via nela alguém que poderia fazer outra escolha, diga-se: abdicar de uma vida falsa, plástica e artificial, por outra, mais livre. De tudo isso, é tocante ver que, na fase pós-adolescente dela, a Literatura os uniu como uma ponte possível para compensar a distância deles. Isso é evidente nas belas passagens finais de sua obra.

Curiosamente, estas duas HQ’s me pareceram muito próximas, ainda que tratem de temas sutilmente distintos. Mas , ainda assim, estão lá, em ambas, a família, os filhos, um casamento fracassado e dois homens (os quais existiram) que desviaram a rota de suas vidas por motivos distintos, o que é perceptível quando se lêem as duas histórias. No entanto, os dois homens guardam profundas tristezas encerradas com a morte, voluntária ou não.

Sem dúvida, meu carnaval foi ótimo.


















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