sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Tecer o luto


Para Fabio Pereira, André Dib , Diana Hagen e Eduardo Camponês
No Eclesiastes há uma passagem, muito famosa, na qual fala-se que há tempo para tudo. Sempre falo que respeito o tempo, seus movimentos ora sutis, ora apressados, suas inesperadas voltas e seus términos sem aviso prévio. Não à toa resolvi chamar esse despretensioso blog de temposobreaterra.

Penso nesse velho texto bíblico e vejo que, nos pólos que nos regem, por vezes tão dialeticamente dolorosos, estar na elaboração do luto é como encerrar uma intensa vivência para renovar outra. É como se houvesse o tempo de viver e o tempo de morrer, mesmo se estando vivo.

Curiosamente, vários amigos meus estão no processo de encerramento, todos de relações afetivas, algumas tão antigas que eles nem lembram com exatidão como começaram; outras, de tão recentes, parecem nem ter começado; todas, no entanto, com as marcas das dificuldades que se têm em fechá-las, em cortar as afinidades e afogar os prazeres e alegrias comuns que teceram os fios de cada uma delas. Talvez neste momento chega-se ao tempo de morrer.

Isso me lembra uma conversa que eu tive há muitos anos com um professor de Filosofia o qual, ao falar sobre a morte em Ser e Tempo, do filósofo alemão Heidegger, dizia que sempre nos deparávamos, em nossa existência, com as pequenas mortes cotidianas. Era como, ele falava, experimentássemos a morte nas pequenas coisas que perdemos a cada dia, e isso me fez lembrar Bishop e seu belo poema Uma arte. E é assim que vejo também.

Relações afetivas ( acho melhor nomeá-las assim mais que amorosas ) almejam à eternidade em sussurros no silêncio do quarto, na observação calada do ser que a gente ama ou na simples alegria de ver quem a gente gosta chegar depois de horas ou dias sem se ver. Cada uma desenha-se na proporção dos sentimentos depositados, nos signos criados e desvelados pelo contato constante dos corpos e das palavras nem sempre ditas, às vezes mal ditas ou ditas sob o vazio da verdade que falta.

No entanto tecem-se, enredam-se os fios. Deles, surgem tecidos, ora nobres, ora frágeis, mas todos não menos definidores que ali criou-se, de fato, algo. Diante disso tudo, acreditar que um dia isso tudo morrerá seria pedir lucidez em excesso num terreno onde não há lógica nem razão, afinal os volteios do amor superam a cegueira que lhe atribuem ou a loucura que lhe persegue. Exige-se muita coragem para matar algo que nos fez tão bem.

E é isso que vejo quando falo com alguns amigos meus. Alguns não sabem definir se ainda amam o ser amado ( ou uma vez amado), outros os esquecem no discurso mas o rosto nega nas expressões cansadas, alguns simplesmente juram nunca mais se envolver com ninguém. Mas como saber?

Quem, sob armaduras de defesa, entra numa relação esperando que ela acabe ou dê errado? Não sei respostas para nada, mas desconfio que melhor que temer viver pelo medo da entrega ou da morte e seu sofrimento é melhor se jogar na entrega da felicidade que aquilo proporciona. Se isso se reverte em sofrer ou estar infeliz ou triste é porque só serviu para mostrar que o jogo dialético se movimenta dentro das expectativas do mundo e sob a ação do tempo. Talvez por isso que, mais doloroso que a morte de algo, o luto seja mais doloroso.

Falo isso porque tecer o luto é destecer tudo o que amor teceu. É como se cada fio, antes trançado de modo firme, agora tivesse que ser esgarçado, rompido e rasgado para gerar um manto cujos lados são o inverso do que houve.

Se antes existiram papéis largados ao acaso com frases de improviso, agora eles são guardados; se antes uma canção tocava o coração sob os efeitos das lágrimas, não a ouvimos mais; se os presentes, os perfumes, os gestos, as comidas, os caminhos partilhados mediam o tamanho do que se viveu, agora guardam-se os perfumes, esquecem-se os gestos, buscam-se outros caminhos, outros nomes, outros corpos ou a falta, nas cadeiras juntas na sala, ou na cama onde antes, no escuro, juraram-se eternidades sob beijos e silêncios.

Tecer esse luto dói, assim como toda morte ou perda do que amamos nos causa dor. Vejo meus amigos, e me vejo também como eles, e elaboro junto esse luto. O manto é longo, a fazenda é pesada, cheia de risos e boas lembranças que hoje causam dor, mas é necessário tecê-la, vivê-la, chorá-la para depois, como tudo que está sob o tempo, dobrá-la e guardá-la num canto da alma que nos lembra sempre que a proporção da dor do luto é a mesma que o prazer no qual foi vivida aquela história.

E depois é só reler o Eclesiastes e entender o mistério. No resto, nada mais doerá porque o tempo destrói, constrói e cura tudo, até do amor e sua morte.

E Viva Johnny Cash!!!



4 comentários:

Gabriela. disse...

É, parece que a bruxa está solta. Meu namoro de 5 anos acabou e a sensação é de não saber onde começo nem onde termino. Parece uma perna que foi amputada, o membro não está lá, mas as sensações do falso membro ainda persegue.

Aline me mostrou esse texto e confesso que fiquei arrepiada, lembrei das aulas de Aléssia e sobre a elaboração do luto, lembrei de um texto de Freud sobre a mulher.

Você falou sobre as pequenas mortes cotidianas, eu tenho uma tatuagem: La petite mort. E termina com a frase da minha próxima tatuagem. Do filme Irreversível, com a Bellucci. O tempo destrói tudo.

Irei tatuar isso algum dia:
Le temps détruit tout

Porque não tem maior sábio que o tempo.

Como eu sou prolixa...

Gabriela. disse...

Ah, e se ajudar, oferece aos teus amigos de luto o nosso Caio

Vai Passar: http://semamorsoaloucura.blogspot.com/2006/10/vai-passar.html

Ou este, Sem ana:
http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=31980&tid=2469660588819364672&kw=ana

Ainda este, Apenas uma maça:
http://semamorsoaloucura.blogspot.com/2006/10/apenas-uma-ma.html

Porque nessas horas, nada melhor que se agarrar ao Nat King Kole na vitrola, um vinho barato do lado e uma leitura que nos mostre que amanhã tem sol.

Odethe que me aguarde! disse...

a tempestade nao dura , pra sempre,,

agora eah catar os caquinhos,, em que se despedaçou o coração,, e seguir a dura jornada,, de junta-los novamente...

até vc esta sobrio... dessa droga que é o amor incompativel....

sorte ai galera, a todos noss..;)

Mazes disse...

Pequenas mortes... acho que ando
as voltas com esse assunto. Gênial o texto! Muito bom mesmo! Ah, salve Johnny Cash!