quarta-feira, 23 de abril de 2008

Três histórias e uma obra ainda não lida




Voltei a ler um livro que estava num canto há tanto tempo que havia até esquecido onde ele estava. Às vezes acontece isso comigo: começo um livro, paro por um período de lê-lo e o retomo até terminá-lo, com um significado bem diferente de quando comecei.

Ainda hoje estou com o Zen e a arte da manutenção das motocicletas, de Pirsig, encostado (quase no seu fim) numa estante daqui de casa. Apesar de não ter entrado tanto quanto um amigo meu na trip do cara da história, esse livro marcou minha chegada nessa cidade onde moro há quase 4 anos, seja lá o que isso possa significar. Talvez significasse mais se tivesse parado na Divina Comédia de Dante, especialmente no livro que fala dos cones do inferno. Alguns entendem por que.

Mas o livro que retomei é outro e ele só serviu para, além do mote de início desse texto, me relembrar três outras obras que li em fases bem distintas dessa vida de ali e acolá. A primeira é O processo de Kafka.

Este li quando tinha uns 13 ou 14 anos e ainda achava que o rock inglês era uma das melhores coisas do mundo. Ainda morava em minha cidade natal e ficava besta com a literatura, além da música do The Cure e dos Smiths, é claro.

A história de Joseph K, seu absurdo, a falta de sentido cada vez maior que sua vida vai tomando me deixaram impressionados e com uma sensação de choque com seu final, em que ele é assassinado, o qual reproduzo aqui:

“- Como um cão – disse K.

Era como se a vergonha devesse sobreviver a ele”


Em outra fase, e ainda morando na mesma cidade, ouvi a música do Cure, Killing an arab, e tinha lido em algum lugar que esta canção tinha sido influenciada por uma obra de um autor franco-argelino.

Lá fui eu atrás da obra que influenciou Robert Smith. Chama-se O estrangeiro. Seu autor: Albert Camus. Descobri que uma professora aposentada tinha o livro e fui até sua casa, super nervoso, tímido atrás dos óculos de lentes verdes (os famosos “fundos de garrafa”), e o pedi emprestado. Sob promessas de cuidados, saí tão contente quanto Clarice naquele conto da Felicidade Clandestina.

O interessante é que reli O Estrangeiro anos depois, sem lentes verdes nem óculos nem na mesma cidade, mas a sensação que tive quando o li da primeira vez permaneceu, inclusive do cheiro que o papel trazia, o mesmo cheiro que me acompanhou quando li Dorian Gray, da coleção da mesma professora.

A história de O Estrangeiro é até simples: um homem absolutamente comum (Meursault) numa praia, sob o efeito da luz forte do sol, mata um árabe, sem motivo aparente, é preso e tem sua conduta diante da vida devassada, o que acaba por mostrá-lo como um ser cruel, tão cruel que se recusou a ver a mãe morta sob a tampa da caixão, entre outras coisas.

Camus, assim como Kafka, flerta com o absurdo, e essa sua obra, curta, certeira e com belos diálogos também tem um final que ainda hoje ressoa em minha cabeça. Ei-lo:

“Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio”

Sempre imaginei esse final com o personagem encolerizado berrando alto cada palavra, tomado por um ódio sem nome. Não à toa não o esqueço.

A terceira e última obra que citei é do colombiano Garcia Márquez. Li de cara o mais famoso de seus livros, Cem anos de solidão, e dois parágrafos são poucos para comentá-lo. O fato é que, depois desse, passei a ler outros mais e mais dele e, entre tantos que me marcaram a lembrança, ainda hoje a Crônica de uma morte anunciada é como um filme que tivesse visto.

Quando li essa obra, já fazia Letras em Recife e vivia (a cada feriado) pegando carona para o sertão junto com um amiga. Ainda é clara a lembrança da minha obrigação de ir dormir cedo para caronar a partir das 6 da manhã e o desejo de ir ao longo da narrativa que falava da estranha situação de Santiago Nasar, de quem todos, ou quase todos, sabiam que ia morrer, mas nada foi feito até acontecer o já anunciado.

É autenticamente de cinema a descrição da corrida dele até a porta que o salvaria e que, naquele instante, sem que se soubesse do que viria, estava sendo fechada.

Este livro, assim como os outros, pede sua leitura na íntegra, até porque, e só me dei conta disso enquanto escrevia esse texto, guardam a estranha semelhança de apresentar homens comuns colocados sob impasses que os levam à sua execução. Dos três, esse final é o mais cru, e não menos cruel:

“Tropeçou no último degrau, mas se levantou imediatamente.’Teve até o cuidado de de sacudir com a mão a terra que ficou em suas tripas’, disse-me tia Wene. Depois entrou em sua casa pela porta dos fundos, que estava aberta desde as seis horas, e desabou de bruços na cozinha.”

Ah, o livro que estou retomando a leitura é de Camus também. Chama-se A Peste.



















Um comentário:

Gabriela. disse...

Interessante, te leio e bem parece que um filme é parido aqui na minha mente. E é bom saber que sou normal então. Pois eu achava esse meu comportamento de ler, parar na metade, ler outro e só então, bem depois, retomar o anterior, grotesco. Algo como sair de braço em braço, sabe? Como se eu fosse uma qualquer. Mas eu me sinto mal com o autor, fico envergonhada que pra compensar, sempre volto umas 50 páginas, acho que pra ele perceber que eu estou querendo retomar de fato, a minha dedicação exclusiva a ele. Eu tenho o imbecil comportamento de organizar meus livros por afinidade. Henry Miller sempre ao lado da Anaïs, e June que se revire no caixão. Nunca coloco Jung perto do Freud. E Nietzsche jamais fica ao lado de Salome (ciúme meu).

Vi O estrangeiro em São Paulo, estava o mesmo preço que Ana Karenina que era o livro de Teresa da Insustentável. Paquerei os dois, só podia levar um. O estrangeiro estava acabadinho, 15 reais era caro. Ana Karenina estava em dois volumes, capa dura (Adoro livro de capa dura) e uma edição de mil novecentos e bolinha...

Às vezes páro e me angustio pq meu pai me dizia uma frase: Leia pouco e releia sempre! Tento fazer isso, mas mais uma vez me sinto como uma moça quase casta, me entregando a tão poucos autores... rs.