domingo, 5 de agosto de 2007

A saudade é Brigitte Bardot


O RIO

(Manuel Bandeira)
Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas no céu, refleti-las
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.


Um dia desses, falando com uma amiga, a quem prezo muito, falei que não sentia saudade de nada, nem de pessoas, nem de acontecimentos, nada...De fato, sem sentimentalismos de novela das 8 ou o peso dos angustiados filmes “pra dentro”, não sou saudosista. Ela riu, como muitos dos que ouvem eu falar isso, e me disse que isso é defesa. Freud ou Lacan explica. Achei e ainda acho até engraçado quando me dizem isso, pois cada um que me ouve dá uma interpretação distinta dessa minha declaração: uns acham que quero me defender e sofrer menos pelo que já foi, outros me julgam frio demais. Frio demais? Rio mais ainda. Se escolhesse as opções anteriores, a primeira talvez coubesse, ou caiba. O fato é que não sinto saudade.

Pensando nisso, lembrei de Heráclito, aquele filósofo pré-socrático que li há eras passadas, já num tempo que não sentia saudade. Vou tomá-lo em minha defesa. Há uma frase desse filósofo na qual ele afirma que “Tudo flui”, o processo de movimento da existência ou da vida ou das coisas é contínuo, num eterno devir, onde nada mais retorna, pois todo e qualquer movimento se lança ao futuro, ao que vem, portanto, ao já citado devir. Essa magnífica fluência é o que, ao meu modo de ver as coisas, nos constrói e nos dá a chance de termos inúmeras possibilidades de sofrermos, gozarmos, quebrarmos a cara, sermos felizes ou só ficarmos na estática situação de ver ou refletir sobre as coisas. No entanto, ainda assim, tudo flui, nada se eterniza.

Talvez nas entrelinhas do entendimento dessa frase de Heráclito a gente imagine ou veja o quanto nos é difícil admitir que falta perenidade nas coisas. Sempre acho que só a arte eterniza. Se quer ser lembrado, faça um poema; se quer ser além-dos-tempos, faça uma música inesquecível, um filme radiante ou conte uma história infame. Caso contrário, o que resta é deixar tudo fluir, como mostra o poema, lindo e eterno, de Bandeira, ao falar do rio. Mais Heráclito, impossível.

Para este filósofo, não só o fluxo contínuo do tempo é fundamental para o movimento das coisas como também a união dos contrários é importante para haver a harmonia, como ele mesmo mostra num de seus fragmentos que chegou até nós: ”o contrário em tensão é convergente; da divergência dos contrários, a mais bela harmonia”. Daí que, no movimento que flui, coisas vêm e vão, nascem e morrem, opõem-se e completam-se, como um rio (mais uma vez essa imagem!) cujas águas não param e, no entanto, ele continua a ser o mesmo rio: “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”,outro fragmento.

Parafraseio Bandeira aqui, em citação ao filósofo das origens, acho que não sentir saudade é ser como um rio que flui, pois o movimento intenso de estar vivo, preencher um espaço na existência do mundo e, sobretudo, ter uma história partilhada, já são coisas suficientes para não se voltar os olhos chorosos ao que já passou. Um cheiro, um perfume, um gesto, uma frase dita ao pé do ouvido ou uma bobagem qualquer falada ou feita por quem a gente ama são coisas as quais devemos celebrar, porque as vivemos, e não lamentar porque já não estão mais aqui.

Às vezes lembro de umas coisas boas, não de minha infância que, apesar de ter sido ótima, quase não lembro de nada, mas de fatos, situações e pessoas, sem tempo ou fase determinados. Fico feliz por saber que vivi isso e que essas pessoas estiveram lá comigo, Mas não sinto falta, afinal o que mais vale não é a eternidade das coisas vividas nos objetos que as têm ( papéis escritos, lenços, flores ressecadas ), mas o que é retido nos desvãos da memória. Se isso é saudade, talvez a sinta. Mas não a vejo como tantos amigos meus a vêem.

Só pra terminar com poesia também, resolvi pôr uma letra (ou seria poema?) de Zeca Baleiro que fala da saudade. Ela se chama Brigitte Bardot e está no disco Líricas, lindo, por sinal, o disco, apesar da versão Charlie Brown Jr...Eis a letra:

a saudade / é um trem de metrô
subterrâneo obscuro / escuro claro
é um trem de metrô / a saudade
é prego parafuso / quanto mais aperta
tanto mais difícil arrancar
a saudade / é um filme sem cor /
que meu coração quer ver colorido
a saudade / é uma colcha velha
que cobriu um dia / numa noite fria
nosso amor em brasa / a saudade
é Brigitte Bardot / acenando com a mão
num filme muito antigo.




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