quarta-feira, 15 de agosto de 2007

about suicide girls


Ana Cristina Cesar
Sylvia Plath


"aquilo que se torna perfeito, inteiramente maduro, quer morrer"
(Nietzsche)

Semana passada soube que havia sido apresentada uma peça aqui, por um projeto do SENAC, chamada Psicose. De início não dei muita importância, pois pensei que se tratasse de algum texto experimental com performances assustadoras, em todas as possibilidades de significado que isso possa ter.

Depois, um conhecido comentou que o texto era de uma autora que se suicidou. De cara pensei em Sylvia Plath, mas não lembrava de nada que ela tivesse escrito como texto dramático. Só ontem descobri que, de fato não era dela, mas de outra autora, inglesa, tão angustiada quanto, chamada Sarah Kane.

Sobre esta última sei quase nada além do que as resenhas de cadernos culturais falam e lamento não ter ido ver a interpretação do grupo que apresentou seu texto aqui, pois, além do que soube, de cenas polêmicas e chocantes, suponho que o texto, pelo que já li nestes mesmos cadernos, já se suporta como elemento de densidade dramática. Lembro que esta mesma peça foi encenada no Brasil, no sudeste do país, por Isabelle Hupert e que as entradas estavam esgotadas.

Literatura e morte parecem ter se tocado em várias épocas. Essa frase, escrita assim, parece óbvia e, de fato, é, mas como tudo que é óbvio guarda uma verdade gasta, prefiro reafirmar que a morte não muda, a literatura, como essência, também não, mas as formas de uma ser vista e outra se expressar certamente sim.

Estar morto, morrer, pensar na morte ou matar-se causaram a angústia, o desejo ou a escrita de grandes escritores e que foram grandes sobretudo porque souberam tratar deste tema com focos ora reais demais, ora poéticos, ora poeticamente lúcidos. O fato é que não é a morte como tema que nos chama a atenção em certos autores, como a escritora inglesa que quase nada sei, mas o modo como ela a apresenta.

Lembro agora de um belo livro de Hilda Hilst chamado Da Morte Odes Mínimas, no qual ela inventa vários nomes para a morte, assim como ela inventava para Deus, e a contempla entre o susto e o fascínio. Mas Hilda Hilst não quis morrer ou pelo menos no sentido do desejo de não se adaptar à vida e escapar pelos caminhos do vago. Sua literatura, de uma grandeza ímpar, se lançou a outros temas tão intensos quanto esse, mas não se aliou a sua existência como um reflexo de sua morte.

Ao que parece em Sarah Kane sim, assim como em Sylvia Plath e outra, esta brasileira, musa de uma geração, chamada Ana Cristina César ou Ana C.

Sylvia Plath era de origem americana, mas morou vários anos na Inglaterra. Foi casada com um poeta, muito respeitado como tal, chamado Ted Hughes. Ao que parece, ou pelo que nos dá a entender, a poesia dela foi ofuscada pela do marido e suponho que não por ela ter menos talento ou por haver uma competição entre ambos, mas talvez, e realço aqui essa dúvida, por ela precisar morrer para enfim ser vista, o que não deixa de resultar num belo paradoxo.

O fato, porém, é que, em seus versos, temas como solidão, angústia, perda e, óbvio, a morte escorrem de modo áspero e ,por vezes, tenso, realçando uma voz que ecoa um forte sofrimento sempre apoiada por uma estrutura lírica que só o tempo realçou a beleza.Se essas últimas palavras pareceram exageradas, leiam o poema Lady Lazarus e saberão o que falo, ainda mais se ele for lido em voz alta, de preferência no original, onde, em um certo verso, ela diz:

“ Dying
Is an art, like everything else
I do it exceptionally well “

Fazendo uma analogia com o personagem bíblico Lázaro, o qual foi ressuscitado por Cristo, este poema a apresenta como a que tentou várias vezes acabar com a própria vida, mas que sempre retornava. As imagens mostradas, o ritmo e, óbvio, o tema da morte que beira a pele e esvazia o corpo estão ali, assustadoramente estruturadas, como se fosse um foco em close no rosto de quem colou-se ao desespero de modo débil e não sabe como sair dele. Este poema fez parte de uma obra, chamada Ariel, lançada dois anos depois de sua morte, que aconteceu em 1963. Não conto como isso se deu porque isto não importa aqui.

O que importa, sim, é sabermos que a Literatura, como falei acima, muitas vezes usa recursos para falar de temas como a morte de modo a nos levar a outros terrenos de percepção. No caso de Plath, se a poesia expressa a angústia da morte (ou seria da vida?), um livro semi-autobiográfico, seu único romance, expõe a narrativa da morte de uma pessoa, ou melhor, da sanidade de uma pessoa. A pessoa, no caso, é a própria Sylvia.

Este romance, chamado A redoma de vidro ( The bell jar) foi lançado em 1963 e expõe, com uma minúcia claustrofóbica, como uma típica moça americana dos anos 50, por não se sentir adaptada ao ambiente que vive, e, sobretudo, por não saber como reagir às pequenas violências do cotidiano, vai se deteriorando rumo à solidão, ao vazio e, por fim, à falta de sentido em tudo o que está a sua volta.

De que isto resulta? Numa tentativa de suicídio (que aqui não é apenas coincidência entre a autora e a personagem) e num tratamento de “cura” psiquiátrica na qual os eletrochoques são apenas um traço sutil diante dos excessos pelos quais a personagem passa para voltar à sua vida, por assim dizer, normal.Lançado inicialmente sob pseudônimo, esta obra logo se tornou um clássico da literatura moderna e, interpretação minha, assusta-nos por sua franqueza e linguagem objetivas.

Curiosamente, Ana C, a poeta brasileira que falei no início do texto, traduziu poemas de Sylvia Plath. Não gosto de fazer analogias entre tragédias ou conquistas porque isso é bobagem, mas aqui parece soar até natural entre essas duas suicide girls, não só pelo fim trágico que deram às suas vidas, mas também pelo talento de ambas para construir uma obra pequena, mas de iluminada singularidade literária.

Ana C era, além de tudo o que falei no parágrafo anterior, uma mulher linda. Admirada pelos colegas e professores do curso de Letras, era de uma sensibilidade e uma inteligência as quais se refletiram na sua poesia e no contato com as pessoas. Ela escreveu apenas três obras, lançadas ainda em vida: Cenas de Abril, Correspondência Completa e A teus pés. Após sua morte, foi lançado Inéditos e dispersos.

Não se pode afirmar que a morte, ou sua contemplação, se torne mais bonita no universo literário, mas o modo como essas mulheres tratam a palavra e os temas que elas elegem, nos fazem pensar o quanto o transitório é um signo cuja regência nos habita e talvez só a palavra nos salve, ou nos eternize. No caso delas, morrer é estar vivo perpetuamente, seja nas imagens dos versos, seja no espanto de lucidez de quem salta do muito alto com a certeza de que o que virá não tem volta.




Nenhum comentário: