sábado, 8 de setembro de 2007

minha sensibilidade às vezes tão perigosamente solta


Fazia um tempo que não postava nada aqui, não por falta de tempo, afinal quando a gente deseja fazer algo nada nos impede, mas por ter pensado em escrever sobre temas que, por um outro motivo, não nasciam, aliás ainda não nasceram, estão em fase de gestação ou morte prematura, quem sabe. Como não gosto de forçar seu surgimento,fiquei no aguardo.

Eles, um dia, virão.

Mas esta semana, há 3 dias quase exatos, passei por uma experiência a qual, para muitos, será uma grande bobagem. Para mim, que tenho passado dias dividido entre a realidade prática e o mundo da subjetividade angustiada, foi algo tão forte, por sua simplicidade inesperada, que demorei um tempo ainda vendo o mundo sob aquele signo ou aquela sensação. Vou tentar transmitir aqui o que foi tal experiência e cada um que a julgue, ou me julgue.

Na quinta-feira fui aplicar um questionário em uma escola de EJA ( Educação de Jovens e Adultos). Ele continha 17 perguntas divididas entre o que os alunos gostam de ler ou escrever ou o que eles necessitam nestes dois campos. O objetivo era simples ao aplicar tal questionário: saber quem são eles e suas dificuldades no campo da escrita e da leitura.

Depois de aplicá-lo à turma da tarde, saí da escola com uma vaga sensação de decepção e espanto por ter sido recebido por um grupo apático de pós adolescentes e outros nem tão adolescentes assim, intuindo que dali não sairia muita coisa.Voltei à noite para executar o mesmo trabalho, agora com uma turma de pessoas para quem a adolescência, se existiu, estava tão longe que era como nunca tê-la vivido.

Outro espanto se deu, mas pela receptividade de todos e pela aceitação em preencher as perguntas, ainda que muitas não lhes fossem tão claras. Por causa disto, uma senhora, de fala calma, mas vigorosa, perguntou sobre uma questão específica que tratava de textos que eles haviam lido em suas vidas escolares e que lhes marcaram, ao que eu respondi se tratando do que lhes marcou como escrita ou leitura, especificamente.

Um homem, já feito, muito bonachão, falou entre risos que nunca esquecera o poema do “pato aqui / pato acolá”. O poema é de Vinícius, ele lembrava, O Pato, muito famoso nos anos 80, época que certamente ele era tão garoto quanto eu.

Ao responder a ele fui chamado por ela para falar que ela foi marcada por 2 poemas os quais ela só lembrava partes, pedaços, e ela de pronto falou; “ tenho duas mãos e o sentimento do mundo” e outro, ela falou com uma simplicidade muito natural, era o que falava que o homem “ comeu como um príncipe” e que havia beijado sua mulher como se fosse a última.

Tremi. Era como se um tecido muito firme que compõe a realidade tão dura dessas pessoas fosse rompido de leve por uma força, a da palavra poética. Sem ela saber, suas palavras derrubaram os teóricos sisudos da literatura que muitas vezes insistem em transformar o milagre da poesia em tratados chatíssimos sobre o fazer poético ou de como ele ( o fazer poético ) atua nas pessoas.

O que ela me deu ali foi a prova clara e viva de como a poesia atua nas pessoas, de modo misterioso, mas marcante, a tal ponto de fazê-las lembrar desses lampejos que elas sentiram e não sabiam explicar. Este lampejo toquei com as mãos ali mesmo, na sala de aula, em meio a pessoas já cansadas do trabalho diário e de suas vidas não tão fáceis, e guardei comigo, secretamente, quase em lágrima de franca emoção.

Comentei depois com um amigo o quanto aquilo foi grandioso, afinal Drummond, o autor do poema do Sentimento do Mundo, ou Chico Buarque, autor de Construção, na qual se fala do operário que come como um príncipe e morre atrapalhando o trânsito, como ela bem lembrou em sala, certamente ficariam felizes em saber que seus versos não só tocaram mas atravessaram a vida das pessoas.

Com isso tudo, lembro de uma teoria a qual fala que a realidade é formada por fenômenos os quais, para apreendê-los em sua essência, se faz necessário fazer-lhe uma “redução” ou suspensão. Para não matar a poesia, vou sintetizar a teoria: apreender o fenômeno das coisas equivale a observar essas coisas isentas de suas vinculações, sejam afetivas, estéticas ou quais sejam. Talvez assim, o fenômeno, que nos é dado em oferta de inteireza, atinge nossa subjetividade e, nesse encontro, nasce o sentido daquilo que é mais puro, expondo o ser de cada coisa.

Não é fácil atingir o fenômeno em si, mas há meios. Um deles é a palavra, sem enganos, pura. Outro meio é a palavra, ainda, mas carregada de força poética. Um filósofo alemão (não digo o nome porque não interessa aqui) afirmava que só através da poesia essa tal essência dos fenômenos poderia vir. Não o nego, só o afirmo, aliás, eu não, mas aquela senhora, tão longe das salas carregadas de senhores molhados de discurso vaidoso sobre teorias filosóficas, oscilando entre a fala marcada pelo egocentrismo tão comum ao meio acadêmico e à construção do conhecimento.

Esta mulher, tão simples em sua noção ingênua sobre a recepção do dizer da poesia, atingiu o fenômeno sem o conhecer e, sem saber, me fez sair de vez dessa realidade prática, a qual me referi acima, e vivenciar o limite entre estar preso na concretude do mundo e ser tocado por ele na minha sensibilidade às vezes tão perigosamente solta.

O resultado disso é que viajei ontem para rever minha família e minha casa de origem me emocionando com tudo o que lia, desde a entrevista de Vinícius a Clarice até um texto da revista Bravo no qual o cineasta João Moreira Salles ( irmão de Walter “Central do Brasil” Salles) falava sobre a inutilidade da poesia sobre o mundo cada vez mais acelerado e utilitarista que vivemos.

Sempre achei que a arte fosse assim mesmo, inútil, e fiquei contente em ler isso e constatar que outros pensam igual, inclusive aquele poeta que não conheço bem e que foi citado por Salles, o W H Auden o qual fala que “ a poesia não faz nada acontecer”. Achei e ainda acho que a poesia é e será sempre a ferramenta do inútil e será grandiosa exatamente por ser assim. Se ela fosse utilitária, se fosse prática, usável, seria menor. No entanto, sua função é revelar a grandeza, seja lá o que isso for, e para tal, não há regras nem definições.

As regras e as definições quem as cria são os teóricos, os críticos, os vaidosos. Quem bebe do néctar da poesia é aquele que, sem saber como, a compreende, isenta de saber se ela lhe matará a fome ou a ajudará a solucionar o um problema matemático.

Há três dias foi me dada essa pureza das sensações de modo secreto, como se o fenômeno enfim se tornasse o é da coisa em si, e tal bondade em me dar isso ainda ressoa. Pena que as palavras aqui sejam inúteis, pois essa sensação é só minha e cada um a vivencia de modo diferente. Mas compreendi, mais uma vez, que, no tecido às vezes áspero disso que chamamos realidade, há rasgos de grandeza. Milagres acontecem, mensagens soam. E fico solitariamente feliz em saber que estou vivo.

Para quem não lembra, vou postar aqui o poema de Drummond:



Sentimento do mundo

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transigena confluência do amor.

Quando me levantar,
o céu estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,anterior a fronteiras,
humildemente vos peço que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho desfiando a recordação do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados ao amanhecer
esse amanhecer mais noite que a noite.

Um comentário:

Gabriela Cruz disse...

Para se ter poesia a vida é preciso ter fé na boa vontade das pessoas e acreditar na beleza e na força palavras, ou seja, preservar uma certa dose ingenuidade. Para mudar o mundo, também: Jesus era ingênuo. Lennon, ingênuo...

Para se ter poesia, é preciso acreditar que [é melhor morrer, do que perder a vida.]*

* frase escrita por Frei Tito antes de cometer o suícidio. Ele tinha perdido a ingênuidade da vida ao ser torturado pelos militares, durante a ditadura.