quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Drummond, Lorca, um sentimento




Esta semana está sendo atípica. Viajei, aliás tenho viajado muito, e para lugares díspares, e nesta última viagem obrigatoriamente tive que me envolver em leituras, análises e interpretações de poetas. Ou seja, voltei minha vida por uns dias exclusivamente para a poesia e sua função ou, num sentido mais amplo, voltei meus olhos míopes para o fenômeno literário, segundo alguns teóricos. Afora o caráter por vezes áspero que a técnica pede, esta volta, esta ação soou como uma retomada.

Reli poetas e redescobri outros, mas, dos tantos que li, 2 me chamaram a atenção sobre sua voz: um é Drummond, o outro Lorca.

De Drummond, vi Adélia Prado, mineira como ele, ler, emocionada, um poema feito por ele chamado Tarde de Maio. Ela não se conteve na leitura e chorou sem terminá-lo. O outro que li,o de Lorca, descobri ao acaso, selecionando textos dele.

Lorca não foi só um grande poeta, mas também um autor de textos dramáticos fortes, cheios de imagens que ressoam no nosso inconsciente ( se é coletivo, só Jung nos salva na resposta). Mas o que destaco aqui é um poema seu, cujo título é Alma Ausente.

Ambos os poemas, ainda que com tratamentso distintos de suas imagens, falam de coisas comuns: a perda, a falta, a solidão causada pela vontade de preenchimento, tudo isso ecoado por uma voz de resignação quase trágica, mas altiva.

Nesses dias em que me retraí só no universo da poesia, onde a falta e o fim prenunciado de coisas que talvez nunca nasceram, tais poemas me falaram mais que antes, mais que agora, mais que nunca.Ei-los:




TARDE DE MAIO




Carlos Drummond



Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de [seus mortos,


assim te levo comigo, tarde de maio,


quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,


outra chama, não-perceptível, e tão mais devastadora,


surdamente lavrava sob meus traços cômicos,


e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes


e condenadas, no solo ardente, porções de minh'alma


nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza


sem fruto.





Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,


colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.


Eu nada te peço a ti, tarde de maio,


senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,


sinal de derrota que se vai consumindo a ponto


de converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém


que, precisamente, volve o rosto, e passa…


Outono é a estação em que ocorrem tais crises,


e em maio, tantas vezes, morremos.



Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,


já então espectrais sob o aveludado da casca,


trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres


com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro


fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,


sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.


E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito


lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.


Nem houve testemunha.



Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.


Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?


Se morro de amor, todos o ignoram


e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.


O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;


não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória


das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,


perdida no ar, por que melhor se conserve,


uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.




Alma ausente


Garcia Lorca


Não te conhece o touro ou a figueira,
nem cavalos nem formigas de tua casa.
Não te conhece o menino ou a tarde,
porque tu morreste para sempre.

Não te conhece o lombo da pedra,
nem o cetim negro onde tu te destroças.
Não te conhece tua lembrança muda
porque tu morreste para sempre.

O Outono chegará com búzios,
uva de névoa e montes agrupados,
mas ninguém quererá olhar teus olhos
porque tu morreste para sempre.

Porque tu morreste para sempre,
como todos os mortos que há na Terra,
como todos os mortos que se esquecem,
num monte enorme de cães apagados.

Não te conhece ninguém. Não. Porém, eu canto-te.
Canto para depois teu perfil e tua graça.
A madurez insigne do teu conhecimento.
Teu apetite de morte e o gosto de sua boca.
A tristeza que teve tua valente alegria.

Tardará muito tempo a nascer, se nascer,
um andaluz tão claro, tão rico de aventura.
Canto sua elegância com palavras que gemem
e lembro uma brisa triste entre as oliveiras.








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