quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

A voz anasalada de Bob Dylan



Não gostava da voz de Bob Dylan. Por ouvir cantores de voz forte e potente, a voz pequena, fanhosa e às vezes desafinada dele me repelia. Ainda assim, me chamavam atenção as versões que fizeram de músicas suas, tais como It's all over now, baby blue, aqui vertida para Negro Amor, com a voz de Gal fechando os anos 70, ou na versão pungente de Jokerman cantada no Circuladô ao Vivo por Caetano.

Mas ano passado, depois de ter visto um documentário produzido por Scorcese, chapei não só na voz, mas em tudo o que há por trás dessa figura. O rosto anguloso, a expressão desolada ou distante, sem falar na postura de rejeitar titulações ou rótulos fizeram-no ser esse mito da cultura norte-americana a tal ponto de um ingresso, segundo li, mas não confirmei, custar 900 paus reais nos shows que ele fará em março no Brasil.

Todas essas características obviamente não são maiores que sua música. De recriador do folk a compositor de novas experimetações (rock, blues), Dylan conseguiu definir uma marca sem igual no modo como contar histórias, muitas vezes com imagens intensas, citações de casos reais (caso de Hurricane) e um modo de olhar as coisas que daí se entende porque certa vez o classificaram como a voz de uma geração.

De certo modo, entendo essa expressão quando ouço algumas de suas canções mais famosas e outras não tanto, como Desolation Row. Mas isso de ter me tocado pra grandeza de Dylan, a beleza de sua voz feia e anasalada e sua imagem de quando jovem veio naquelas canções aparentemente mais simples, mas que me deram a pista para entender o porquê dele ser a tal voz de uma geração, seja lá que geração é ou foi essa.

O fato é que, ao ouvir canções como It ain’t me, não há como não sentir alguma nostalgia de um passado que não vivi. Tenho ouvido Dylan cada vez mais e cada vez mais entendo tudo.

Em seguida a letra de It ain’t me. Tradução, no Google tem várias, mas melhor que ler é ouvir a canção.Ah, Cash fez uma versão dela.

It ain’t me

Go away from my window

Leave at your own chosen speed

I'm not the one you want babe

I'm not the one you need

You say you're lookin' for someonewho's never weak

but always strongto protect you and defend you

whether you are right or wrong

Someone to open each and every door

But it ain't me, babeno, no, no it ain't me, babe

it ain't me youre lookin' for, babe

Go lightly from the ledge, babe

Go lightly on the ground

I'm not the one you want, babe

I'll only let you down

You say you're lookin' for someone

who'll promise never to part

someone to close his eyes for you

someone to close his heart

Someone who will die for you and more

But it ain't me, babeno, no, no

it ain't me, babeit ain't me

you're lookin' for, babe

Go melt back in the night

Everything inside is made of stone

there's nothing in here moving

And anyway,

I'm not aloneyou say you're lookin' for someone

who'll pick you up each time you fall

to gather flowers constantlyand to come each time

you call a lover for your life and nothing more

but it ain't me babe

no, no no it aint me babe

it ain't me youre lookin for babe



quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Lista desordenada



Nunca curti listas de melhores músicas, livros ou filmes. Mesmo assim, sempre me vejo atraído por elas, tanto que comprei aquele tijolo chamado 1000 discos para ouvir antes de morrer e, confesso, achei-o ótimo.

Como tenho visto ( e revisto ) uns filmes nestes últimos dias, lembrei de cenas de outros que havia visto há anos e que ficaram presas à minha lembrança. Não sei se vou lembrar de todos os filmes e cenas que me vieram há três dias,mas os que mais me marcaram, por variadas razões, seguem abaixo, na minha lista sem culpa de cair nessa armadilha de preferências sempre tão subjetivas.

- Noites de Cabíria (Fellini)

Quem é ou já foi da minha intimidade sabe o quanto amo esse filme. Tem uma amiga minha que não chora à toa e me confessou que o viu em São Paulo, sozinha, e desceu uma lágrima tão resignada quanto as pequenas tragédias vividas pela Cabíria de Giulieta Masina.

A cena final dessa película, na qual ela, depois de mais uma desilusão, sai chorando lágrimas negras de rímel ( Caetano cita isso em uma música que fez para a atriz italiana) é de uma marca sem igual, tanto que, ao sorrir para a câmera, nos fala mais que a metalinguagem do cinema pode nos dar.

- Magnolia (P T Anderson)

As 3 horas cravadas deste filme valem cada cena e interpretação. Adoro Paul Thomas Anderson desde o longo traveling que abre Boogie Nights. Até o estranho Punch, Drunk, Love nos pega sem que a gente perceba e, o melhor, muito depois de tê-lo visto.
Em Magnólia, se eu falar da chuva de sapos (momento de intensa carga simbólica
e, porque não, divina) serei redundante. Se falo também da sequência em que todos os personagens-chave cantam a música de Aimee Mann estarei falando o óbvio.
Destaco a cena final, em que o policial apaixonado, após a tal chuva que muda tudo, fala para a garota junkie que quer ficar com ela e que vai ajudá-la, isso ao som de outra música de Aimee Mann não por acaso chamada Save me. Curiosamente, tal Cabíria na cena acima citada, a garota, chorando emocionada, também olha para a câmera e sorri.

- A Doce Vida (Felini)
Só vi esse filme uma vez e preferi não revê-lo e não o considero um mal filme.
A cena que destaco é de Mastroiani tendo de fazer a decisão entre a vida ( nada doce ) que ele levava e outra, mais pura. A escolha já se supõe qual é.



- Brilho eterno de uma mente sem lembrança (Michel Gondry)

Para um diretor fazer você torcer por Jim Carrey ele deve ser muito bom. Pois é o que acontece nesse filme de narrativa distorcida e história tão familiar a tanta gente que é impossível não se emocionar com ele.
A cena, ou as cenas, é ou são as da fuga pela consciência do personagem de Carrey depois dele desistir de deletar da memória a mulher que ama, ninguém menos que Kate Winslet. Uma pequena lição para os ex-apaixonados.

- Lucia e o Sexo (Julio Medem)
Haja símbolos nesse filme, mas a cena do reencontro de Lucia e seu amado,depois de uma separação longa, emocionou tanto ao ponto de causar choros altos de homens feitos no colo das namoradas no cinema.

- The Butcher Boy (Neil Jordan)
Sinead O’Connor interpretando Nossa Senhora só traz mais beleza a esse filme que mistura violência e poesia. Faz anos que vi e não o esqueço.

- Gritos e Sussurros (Bergman)

Um filme de terror, segundo alguns, por retratar o horror do medo, da solidão, da morte e do que mais for do humano.
Entre tantas grandes cenas, destaco a já óbvia citação à Pietá.

- The Fisher King (Terry Gilliam)

Vi esse filme há pouco e adorei o modo como cada personagem é apresentado. Todos muito diferentes, mas unidos pela loucura, solidão, carência e solidariedade.
As cenas da perseguição de Parry pela mulher que ama é de uma beleza sem igual, entre tantas outras, tão sutis nas mensagens que às vezes se perdem.

- Dancers in the dark (Lars Von trier)

A cena do trem, na qual Bjork canta que já viu tudo, é perfeita na cor, na coreografia e no olhar triste de Selma.

- Love and human remains (Denis Arcand)

Adoro esse filme, tanto ou mais até que Cabíria.
Se o amor está esfacelado, ainda resta a solidariedade dos que, desesperados, o buscam ou o rejeitam. Essa parece ser a mensagem da cena que fecha o filme.

-A Liberdade é azul (Krzysztof Kieslowski)

Não sei dizer qual cena específica,mas sempre me lembro da velhinha corcunda pondo algo no lixeiro ou da incapacidade da mulher em matar os ratos que estão em seu apartamento.

Lembrei de alguns de Almodovar, mas não tenho como destacar uma cena específica. Sempre me marcou aquela de A lei do desejo em que o diretor descobre que ama o assassino de seu amante, mas é tarde porque ele havia se matado. Passional e quase brega.
Em breve virão outras listas, nem sei sobre o que, mas sem ordem de preferência, tal como esta.





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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Le temps détruit tout



Vejo à minha frente um muro, vermelho. Mas o que menos importa é a cor. A forma, apenas faz o desenho do que vejo. No entanto, o muro é vermelho. Vejo o espaço em volta de mim. É apenas um espaço com tudo distribuído, de modo que cada coisa ocupe o seu lugar e assim eu possa saber que ali há, de fato, um espaço.

Porém tudo se distribui e assim se faz, sem que eu pergunte o porquê de cada coisa estar ali, ainda que meu coração pulse por sabê-las tão vivas e inteiramente dadas e sussurre, como para si mesmo, o que é cada coisa ali, no mistério de sua forma, a me observar enquanto as observo.

Olho para o firmamento e o que se espraia é puro azul e o azul é o que me eleva, pois o vejo tão amplo que sua luz intensa destrói as formas e redefine o espaço numa sensação de grandeza cuja medida é dada pelo que os olhos podem alcançar, e meus olhos, de tão poucas noções de longitude, se espantam, não com a distância que o céu espalha seu denso véu de cores múltiplas, mas com o reconhecimento dessa grandeza, a qual não pertenço e sei dela tão bem como se assim a fosse.

E penso que cada uma dessas coisas, assim tão naturalmente vistas, supera os nomes, mata o verbo, como se soubéssemos, eu e elas, que as palavras, às vezes tão necessárias, outras vezes são apenas tentativas frágeis de prender sensações maiores que elas mesmas ou fazer surgir significados e verdades das quais não conhecemos, ignoramos ou não queremos aclarar, ainda que presentes, pois não sabemos como lidar com algo tão grande cuja dimensão alarga os espaços e nos mostra, tão silenciosamente quanto um muro alto que guarda algo precioso, que as sensações, sim, pedem palavras que as traduzam, mas que não podem ser ditas, ainda.

O Tempo, não o vejo, assim como ninguém o veria, mas sei que ele está ali, esmaecendo cores, enrugando olhos, corroendo paredes e dando outros matizes a roupas, livros, cidades e esperanças. Vejo o tempo fechar o ciclo de uns e abrir amplas possibilidades da existência a tantos outros.

Mas o que menos importa são as marcas do que vejo. O Tempo, este tão íntimo, que me assusta e me fascina com sua onipresença, como um Deus que, se não conhece a verdade, a detém em sua essência, o Tempo me fala coisas, redefine meus sentimentos em novas cores, matizando-as, não pelo desgaste, mas pela intensidade do que elas podem trazer.

E eis que o vermelho do muro, hoje vivo e intenso, amanhã pode estar lançado à sorte de, sob o toque sutil desse mesmo Tempo, estar esmaecido, quase morto de sua densidade. E eu, como assustado por já saber uma verdade, como um mistério sempre revelado, o olho com espanto ao ver que tantas coisas nascem, outras tantas morrem e outras se tornam fixas no signo da perenidade porque desconfio que aquilo que o Tempo trama, em seu silêncio de presença eterna, se fixa não nas formas, nem nas cores, nem nos limites do verbo, mas na grandeza intensa das sensações, essas que não nos pedem para chegar, porque sempre estiveram ali, e parecem não se ir mais porque não foram moldadas com os elementos da perda.

Sobretudo respeito o Tempo.

Palavra que nos falta





Li num texto de Octavio Paz que nós não falamos as coisas, mas as palavras que dizem as coisas. Isso me lembrou Saussure e sua velha teoria da arbitrariedade do signo, a qual o poeta mexicano não aceita muito bem por preferir a noção, muito platônica, de que há relação entre som e sentido.

Sem querer, Paz me trouxe um abismo que eu não mais visitava, o da impossibilidade de dizer as coisas, ou mais: o da impossibilidade de, ao falar as coisas, trazê-las em sua essência. Fiquei levemente angustiado porque sempre me parece que a palavra nos falta e não há outra forma de nos salvar.

Para Octavio Paz, grande poeta que foi, só os deuses dizem as coisas ( o sol, a água, a luz como se Deus soprasse e tudo assim se fizesse ). Nós, humanos, tão pequenos, ganhamos a graça de apenas nomear, dar forma, atribuir conteúdos àquilo que vemos e nomeamos, ou significamos.

Fico angustiado porque nunca chegaremos à essência das coisas, dos objetos, dos sentimentos porque o Ser de cada uma dessas coisas se sobrepõe ao verbo. Sabê-los, conhecê-los nos pede mais que um vocabulário rico; talvez nos peça um aclaramento de consciência maior do que ela nos dá.

Por ser poeta também, Paz já conhecia a resposta, talvez até melhor que os filósofos e os lingüistas. A poesia e seu universo não só servem para renomear as coisas, mas também para criá-las, assim como os deuses fizeram.

Um poeta, ao usar o verbo, não sobe às esferas celestes, mas faz descer ao seu mundo (e só dele ) a divindade que habita em cada ente que preenche os espaços físicos para, em sopro renovado, tornarem-se novos objetos, novas coisas, novas palavras, no universo da poesia.

Se a palavra falta, o poeta nos deixa o vácuo do silêncio ( este sim, por vezes tão eloqüente) e ele nos dirá mais que nosso olho vê e nossos ouvidos captam em verdade e beleza. Sem dúvidas, os poetas sabem do mistério.

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E um menino, de olhos arregalados, como quem se espantasse com a existência e seu brilho, perguntou:

- Mas o que há por trás das coisas? O que vem depois da destruição dos espaços e sua ordem?

E o poeta respondeu:

- O silêncio e sua verdade sem nome.



Ordenada e cerebral maneira de ser feliz

"E no entanto é preciso cantar / Mais que nunca é preciso cantar / É preciso cantar e alegrar a cidade"
(Marcha da Quarta-Feira de Cinzas - Carlos Lyra e Vinícius de Morais)
Como havia comentado em um dos textos anteriores, fui ao carnaval de Recife. Não que isto seja algo magnífico, até porque, como havia dito no mesmo já citado texto, não curto muito o empurra-empurra e a desordem naturais a essa festa. Mas, como sou contraditório ( “ o mais contraditório dos homens”, como dizia Gilberto Freyre ), lá fui eu, certo do que queria: me divertir. E, contrariando até mesmo as minhas expectativas, me diverti, sim.

O carnaval em Recife tem a vantagem de se mostrar estranhamente pouco comum ao que a gente pensa como carnaval. Há, sem dúvidas, as máscaras, as fantasias, os blocos, troças, o desregramento da carne e dos sentidos, e o que mais houver. No entanto, por vezes, parece ser uma conjunção de festas espalhadas em vários lugares, como se toda a diversão do ano se condensasse ali, naqueles dias, tanto que a gente esquece até se o sábado é domingo ou se a quarta de cinzas foi semana passada.
Não falo isso em tom moralista nem de desprezo; ao contrário, achei essa pletora de alegria ( salve, Caetano!) e essa caótica felicidade motivos suficientes para viver a minha ordenada e cerebral maneira de ser feliz se realizar.

Para isso, decidi minimizar pequenas raivas e inevitáveis contratempos. Pela minha fama de garoto-enxaqueca, isso parecia impossível, mas, glória da idade ou desejo de só sorrir, as poucas que vieram as diluí no suor derramado nas ladeiras de Olinda. Resultado disso tudo: um dos melhores carnavais que já tive.

Para mim foi um carnaval pra dentro, aquele que você curte as festas, revê as pessoas (carnavais servem para trazer o passado e enterrar histórias do presente também), brinca com quem brinca com você, mas observa num canto muito íntimo, só seu, indivisível, tudo a sua volta, com um sorriso de quem quer só celebrar o instante, sem pressa, nem agitação.

E foram assim todos os dias, sem pensar nos dias de antes, felizes, mas prevendo os que vinham, improváveis. O resultado já supunha ou esperava e, por esperar, não me machuquei tanto, e agora rio de tudo e agradeço a Deus por ter tido dias tão calmos e meses tão bons, tanto que isso se refletiu na minha cara e nos comentários de meus velhos amigos que falaram que eu estava diferente, mudado. Não me atrevi a perguntar se pra pior. Desconfio da resposta.

O fato é que o carnaval de esquecimento que foi este nas ruas velhas de Recife ou no sobe e desce de Olinda me marcou por ser exatamente comum, sem beijos, sem abraços e sem amores sem nome. Vi tudo o que queria e fiz tudo o que me propus. O que restou foi uma vontade de ficar ou de ter a saudade que nunca tive. E deu até pra me emocionar com o frevo cantado por Luis Melodia. Salve, Melodia!!!

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Tecer o luto


Para Fabio Pereira, André Dib , Diana Hagen e Eduardo Camponês
No Eclesiastes há uma passagem, muito famosa, na qual fala-se que há tempo para tudo. Sempre falo que respeito o tempo, seus movimentos ora sutis, ora apressados, suas inesperadas voltas e seus términos sem aviso prévio. Não à toa resolvi chamar esse despretensioso blog de temposobreaterra.

Penso nesse velho texto bíblico e vejo que, nos pólos que nos regem, por vezes tão dialeticamente dolorosos, estar na elaboração do luto é como encerrar uma intensa vivência para renovar outra. É como se houvesse o tempo de viver e o tempo de morrer, mesmo se estando vivo.

Curiosamente, vários amigos meus estão no processo de encerramento, todos de relações afetivas, algumas tão antigas que eles nem lembram com exatidão como começaram; outras, de tão recentes, parecem nem ter começado; todas, no entanto, com as marcas das dificuldades que se têm em fechá-las, em cortar as afinidades e afogar os prazeres e alegrias comuns que teceram os fios de cada uma delas. Talvez neste momento chega-se ao tempo de morrer.

Isso me lembra uma conversa que eu tive há muitos anos com um professor de Filosofia o qual, ao falar sobre a morte em Ser e Tempo, do filósofo alemão Heidegger, dizia que sempre nos deparávamos, em nossa existência, com as pequenas mortes cotidianas. Era como, ele falava, experimentássemos a morte nas pequenas coisas que perdemos a cada dia, e isso me fez lembrar Bishop e seu belo poema Uma arte. E é assim que vejo também.

Relações afetivas ( acho melhor nomeá-las assim mais que amorosas ) almejam à eternidade em sussurros no silêncio do quarto, na observação calada do ser que a gente ama ou na simples alegria de ver quem a gente gosta chegar depois de horas ou dias sem se ver. Cada uma desenha-se na proporção dos sentimentos depositados, nos signos criados e desvelados pelo contato constante dos corpos e das palavras nem sempre ditas, às vezes mal ditas ou ditas sob o vazio da verdade que falta.

No entanto tecem-se, enredam-se os fios. Deles, surgem tecidos, ora nobres, ora frágeis, mas todos não menos definidores que ali criou-se, de fato, algo. Diante disso tudo, acreditar que um dia isso tudo morrerá seria pedir lucidez em excesso num terreno onde não há lógica nem razão, afinal os volteios do amor superam a cegueira que lhe atribuem ou a loucura que lhe persegue. Exige-se muita coragem para matar algo que nos fez tão bem.

E é isso que vejo quando falo com alguns amigos meus. Alguns não sabem definir se ainda amam o ser amado ( ou uma vez amado), outros os esquecem no discurso mas o rosto nega nas expressões cansadas, alguns simplesmente juram nunca mais se envolver com ninguém. Mas como saber?

Quem, sob armaduras de defesa, entra numa relação esperando que ela acabe ou dê errado? Não sei respostas para nada, mas desconfio que melhor que temer viver pelo medo da entrega ou da morte e seu sofrimento é melhor se jogar na entrega da felicidade que aquilo proporciona. Se isso se reverte em sofrer ou estar infeliz ou triste é porque só serviu para mostrar que o jogo dialético se movimenta dentro das expectativas do mundo e sob a ação do tempo. Talvez por isso que, mais doloroso que a morte de algo, o luto seja mais doloroso.

Falo isso porque tecer o luto é destecer tudo o que amor teceu. É como se cada fio, antes trançado de modo firme, agora tivesse que ser esgarçado, rompido e rasgado para gerar um manto cujos lados são o inverso do que houve.

Se antes existiram papéis largados ao acaso com frases de improviso, agora eles são guardados; se antes uma canção tocava o coração sob os efeitos das lágrimas, não a ouvimos mais; se os presentes, os perfumes, os gestos, as comidas, os caminhos partilhados mediam o tamanho do que se viveu, agora guardam-se os perfumes, esquecem-se os gestos, buscam-se outros caminhos, outros nomes, outros corpos ou a falta, nas cadeiras juntas na sala, ou na cama onde antes, no escuro, juraram-se eternidades sob beijos e silêncios.

Tecer esse luto dói, assim como toda morte ou perda do que amamos nos causa dor. Vejo meus amigos, e me vejo também como eles, e elaboro junto esse luto. O manto é longo, a fazenda é pesada, cheia de risos e boas lembranças que hoje causam dor, mas é necessário tecê-la, vivê-la, chorá-la para depois, como tudo que está sob o tempo, dobrá-la e guardá-la num canto da alma que nos lembra sempre que a proporção da dor do luto é a mesma que o prazer no qual foi vivida aquela história.

E depois é só reler o Eclesiastes e entender o mistério. No resto, nada mais doerá porque o tempo destrói, constrói e cura tudo, até do amor e sua morte.

E Viva Johnny Cash!!!