segunda-feira, 20 de agosto de 2007

"A doçura que fascina e o prazer que mata"

mallarmé

baudelaire

Há poetas que só bastariam ter escrito um poema e isso já seria o suficiente para justificar suas grandezas.

Mas muitos, não contentes, resolvem fazer uma obra inteira e marcar definitivamente a Literatura.

Selecionei dois poemas que gosto muito de dois grandes poetas franceses do fim do seculo 19 os quais redefiniram o que seria a poesia, o poema e a sensibilidade modernas.

Não há muito o que falar, só ler e se deixar levar pelas vozes desses poetas e suas imagens cheias de símbolos.

A uma passante
Baudelaire
A rua ensurdecedora urrava ao meu redor
Alta e esbelta, toda de luto, majestosa na dor,
Uma mulher passou, a mão vaidosa
Erguendo, balançando a bainha e o festão.
Ágil e nobre, com pernas de estátua.
Eu, crispado como um extravagante, bebia
No seu olho, lívido céu que gera o furacão,
A doçura que fascina e o prazer que mata.
Um clarão... e a noite depois! - Fugidia beleza,
De olhar que me fez renascer,
Será que só te verei de novo na eternidade?
Tão longe daqui! Tão tarde! Talvez nunca!
Pois ignoro para onde vais e não sabes para onde vou.
Ó tu que eu teria amado, ó tu que sabias disso.



Brisa Marinha

Mallarmé

A carne é triste, e eu li todos os livros, todos.
Fugir! além! Eu sei que há pássaros já doudos
Por se ver entre os céus e a espuma do alto-mar!
Nada, nem os jardins refletidos no olhar,
Retém meu coração que já no mar se aninha.
Nem, ó noites, a luz da lâmpada sozinha
Sobre o papel vazio, intangível de brilho,
E nem a mulher moça amamentando o filho.
Hei de partir! Vapor de mastros oscilantes,
Ergue a âncora para regiões extravagantes!
Um Tédio desolado, entre anseios intensos,
Ainda acredita no supremo adeus dos lenços!
E esses mastros, talvez, cheios de maus presságios,
São dos que um vento faz vergar sobre os naufrágios
Sem ilhas férteis e sem mastros de veleiros...
Mas, ó minha alma, ouve a canção dos marinheiros!

Em breve, posto mais poemas de duas poetas brasileiras.





sábado, 18 de agosto de 2007

trilha sonora dos dias

johnny cash

jeff buckley

Recebi um cd esta semana, que eu aguardava há muito tempo, de um rapazinho chamado Chris Garneau. Ele lançou um disco leve, melódico, com presença de um piano que se casa de modo perfeito à sua voz. O rapaz é de Nova York e lançou este disco em 2006. O disco se chama Music for tourists. Ouçam-no, de preferência quando estiverem entre o fazer nada e algo que não tire a atenção.

Alguns o chamam de melancólico, o disco, pois as músicas são todas mais lentas. Para evitar que me chamem de deprimido, prefiro não fazer comentários sobre o tipo de música que este rapaz faz. Sugiro apenas que ouçam Refief e vejam o clip desta canção. Muito bons.

Tenho ouvido tanta coisa esses dias, algumas que descubro na curiosidade do que leio, outras porque amigos me falam. O fato é que algumas músicas chegam e ficam por dias “fritando”, como se dizia antigamente quando a gente punha um LP no Toca-Discos. Quem está, por assim dizer, “fritando” no PC, no som de casa, no mp4 são, além do Garneau, Jeff Buckley, Rufus Wainwright e Johnny Cash. Dos três, talvez este último seja o mais conhecido, até porque foi lançado um filme sobre sua vida chamado Johnny and June, que eu não vi.

Dono de uma voz potente, grave, Johnny Cash é mais identificado como cantor de country, mas como conheço pouco sua obra, o que posso dizer é que, do que tenho ouvido até agora, ele superou essa definição. O modo como ele diz as palavras, o timbre marcante e o jeito de interpretar as canções me fizeram perceber que ele vai além desse gênero. Bom, mas isso é só a impressão de quem conhece pouco, quase nada. De qualquer modo, procurem ouvir Hurt, uma versão de uma música do Nine Inch Nails, ou a versão que ele fez de One, do U2, e vocês entenderão o que falo. Aliás, o U2 teve a participação de Cash na última faixa de Zooropa.

Jeff Buckley eu já havia ouvido há algum tempo. De cara tinha gostado da versão de Hallelljuja, de Leonard Cohen, que ele havia feito, mas nunca tinha parado para ouvir o disco dele, por inteiro. Só esses dias acabei por ouvi-lo e, enfim, o descobri.

A história desse rapaz é bem trágica. Filho de Tim Buckley ( conhecido cantor de folk nos EUA), ele queria se tornar um grande guitarrista e não um cantor, como o pai, segundo li para que ele tivesse autonomia sobre sua carreira e evitar as velhas comparações entre filhos de cantores e seus pais famosos. O fato é que ele acabou cantando e chamando atenção pela beleza de sua voz.

Para encurtar o texto, ele lançou um disco em 1994, chamado Grace, que não fez tanto sucesso, por não ser tão comercial que tocasse nas rádios mais pop, nem tão alternativo que tocasse nas independentes. De qualquer modo, chamou a atenção da crítica e de um público o qual se tornou maior depois que este rapaz morreu, aos 31 anos, quando ia encontrar sua banda para fazer seu segundo disco.

Mas, tragédias à parte, ouçam o disco. Há músicas lindas, como a que dá título ao disco, a que me referi acima, de Leonard Cohen, e outras onde a gente pode perceber melhor a beleza e o alcance da voz desse rapaz, como Lilac Wine e Corpus Christi Carol. Há versões que ele, e que estão soltas na NET, para canções bem diferentes, que vão de Smiths ( I know it’s over) a Bob Dylan ( If you see her, say hello). Ouçam-nas também.

Gilberto Freyre disse, certa vez, aliás isso está gravado e sampleado no disco do DJ Dolores, que ele era “o mais contraditório dos homens”. Pois bem, me coloco na frase do sociólogo. Falo isso porque, há muitos anos, quando ainda morava em Recife, via clips de Rufus Wainwright na MTV e achava enfadonhas sua voz e sua música. Nunca ia até o final do clip ou da música. Aquilo simplesmente me irritava.

Pois bem, este ano li uma resenha sobre o novo disco deste rapaz e resolvi baixá-lo para ver o que era. Toquei algumas vezes e não ouvi nada inteiro. Mas eis que um dia, ao acaso, bato o olho na lista das músicas e, aleatoriamente, escolho uma chamada Going to a town. Chapei. Achei perfeitas a melodia, a voz e o jeito desencantado dele cantá-la.

Aquela canção parecia ser a trilha sonora dos dias que eu estava vivendo, entre a tristeza e a euforia (segundo os psicanalistas, a mania) e foi quem me conduziu às demais da lista. Fui descobrindo cada uma aos poucos e fui, cada vez mais, me entusiasmando por elas. Resultado: comprei o disco. Baixei outras coisas dele também, inclusive uma música que ele fez em homenagem ao Jeff Buckley, chamada Memphis Skyline, e outra,Old whore’s diet, em dueto com o Antony Hegart.

Quem puder, ou quem quiser, ou quem se interessar, ouça o novo disco dele, Release the stars. Essa frase, que dá título ao disco, está presente na faixa que fecha o CD cujas metáforas caem bem para quem ainda se apega a vãs esperanças, mesmo estando no meio do caminho entre os 30-e-alguma e os 40-e-vou-pra-lá.

E se puderem vejam o clip de Going to a town. Esse vídeo, de aparência simples, guarda alguns signos que vão desde as parcas, donas do destino (observem as mulheres vestidas de preto), até Jesus Cristo. Achei tudo sutilmente exagerado, dramático, quase trágico. Mas a música desse menino é assim mesmo. Ouçam-na, ou melhor, ouçam-nos.









quarta-feira, 15 de agosto de 2007

about suicide girls


Ana Cristina Cesar
Sylvia Plath


"aquilo que se torna perfeito, inteiramente maduro, quer morrer"
(Nietzsche)

Semana passada soube que havia sido apresentada uma peça aqui, por um projeto do SENAC, chamada Psicose. De início não dei muita importância, pois pensei que se tratasse de algum texto experimental com performances assustadoras, em todas as possibilidades de significado que isso possa ter.

Depois, um conhecido comentou que o texto era de uma autora que se suicidou. De cara pensei em Sylvia Plath, mas não lembrava de nada que ela tivesse escrito como texto dramático. Só ontem descobri que, de fato não era dela, mas de outra autora, inglesa, tão angustiada quanto, chamada Sarah Kane.

Sobre esta última sei quase nada além do que as resenhas de cadernos culturais falam e lamento não ter ido ver a interpretação do grupo que apresentou seu texto aqui, pois, além do que soube, de cenas polêmicas e chocantes, suponho que o texto, pelo que já li nestes mesmos cadernos, já se suporta como elemento de densidade dramática. Lembro que esta mesma peça foi encenada no Brasil, no sudeste do país, por Isabelle Hupert e que as entradas estavam esgotadas.

Literatura e morte parecem ter se tocado em várias épocas. Essa frase, escrita assim, parece óbvia e, de fato, é, mas como tudo que é óbvio guarda uma verdade gasta, prefiro reafirmar que a morte não muda, a literatura, como essência, também não, mas as formas de uma ser vista e outra se expressar certamente sim.

Estar morto, morrer, pensar na morte ou matar-se causaram a angústia, o desejo ou a escrita de grandes escritores e que foram grandes sobretudo porque souberam tratar deste tema com focos ora reais demais, ora poéticos, ora poeticamente lúcidos. O fato é que não é a morte como tema que nos chama a atenção em certos autores, como a escritora inglesa que quase nada sei, mas o modo como ela a apresenta.

Lembro agora de um belo livro de Hilda Hilst chamado Da Morte Odes Mínimas, no qual ela inventa vários nomes para a morte, assim como ela inventava para Deus, e a contempla entre o susto e o fascínio. Mas Hilda Hilst não quis morrer ou pelo menos no sentido do desejo de não se adaptar à vida e escapar pelos caminhos do vago. Sua literatura, de uma grandeza ímpar, se lançou a outros temas tão intensos quanto esse, mas não se aliou a sua existência como um reflexo de sua morte.

Ao que parece em Sarah Kane sim, assim como em Sylvia Plath e outra, esta brasileira, musa de uma geração, chamada Ana Cristina César ou Ana C.

Sylvia Plath era de origem americana, mas morou vários anos na Inglaterra. Foi casada com um poeta, muito respeitado como tal, chamado Ted Hughes. Ao que parece, ou pelo que nos dá a entender, a poesia dela foi ofuscada pela do marido e suponho que não por ela ter menos talento ou por haver uma competição entre ambos, mas talvez, e realço aqui essa dúvida, por ela precisar morrer para enfim ser vista, o que não deixa de resultar num belo paradoxo.

O fato, porém, é que, em seus versos, temas como solidão, angústia, perda e, óbvio, a morte escorrem de modo áspero e ,por vezes, tenso, realçando uma voz que ecoa um forte sofrimento sempre apoiada por uma estrutura lírica que só o tempo realçou a beleza.Se essas últimas palavras pareceram exageradas, leiam o poema Lady Lazarus e saberão o que falo, ainda mais se ele for lido em voz alta, de preferência no original, onde, em um certo verso, ela diz:

“ Dying
Is an art, like everything else
I do it exceptionally well “

Fazendo uma analogia com o personagem bíblico Lázaro, o qual foi ressuscitado por Cristo, este poema a apresenta como a que tentou várias vezes acabar com a própria vida, mas que sempre retornava. As imagens mostradas, o ritmo e, óbvio, o tema da morte que beira a pele e esvazia o corpo estão ali, assustadoramente estruturadas, como se fosse um foco em close no rosto de quem colou-se ao desespero de modo débil e não sabe como sair dele. Este poema fez parte de uma obra, chamada Ariel, lançada dois anos depois de sua morte, que aconteceu em 1963. Não conto como isso se deu porque isto não importa aqui.

O que importa, sim, é sabermos que a Literatura, como falei acima, muitas vezes usa recursos para falar de temas como a morte de modo a nos levar a outros terrenos de percepção. No caso de Plath, se a poesia expressa a angústia da morte (ou seria da vida?), um livro semi-autobiográfico, seu único romance, expõe a narrativa da morte de uma pessoa, ou melhor, da sanidade de uma pessoa. A pessoa, no caso, é a própria Sylvia.

Este romance, chamado A redoma de vidro ( The bell jar) foi lançado em 1963 e expõe, com uma minúcia claustrofóbica, como uma típica moça americana dos anos 50, por não se sentir adaptada ao ambiente que vive, e, sobretudo, por não saber como reagir às pequenas violências do cotidiano, vai se deteriorando rumo à solidão, ao vazio e, por fim, à falta de sentido em tudo o que está a sua volta.

De que isto resulta? Numa tentativa de suicídio (que aqui não é apenas coincidência entre a autora e a personagem) e num tratamento de “cura” psiquiátrica na qual os eletrochoques são apenas um traço sutil diante dos excessos pelos quais a personagem passa para voltar à sua vida, por assim dizer, normal.Lançado inicialmente sob pseudônimo, esta obra logo se tornou um clássico da literatura moderna e, interpretação minha, assusta-nos por sua franqueza e linguagem objetivas.

Curiosamente, Ana C, a poeta brasileira que falei no início do texto, traduziu poemas de Sylvia Plath. Não gosto de fazer analogias entre tragédias ou conquistas porque isso é bobagem, mas aqui parece soar até natural entre essas duas suicide girls, não só pelo fim trágico que deram às suas vidas, mas também pelo talento de ambas para construir uma obra pequena, mas de iluminada singularidade literária.

Ana C era, além de tudo o que falei no parágrafo anterior, uma mulher linda. Admirada pelos colegas e professores do curso de Letras, era de uma sensibilidade e uma inteligência as quais se refletiram na sua poesia e no contato com as pessoas. Ela escreveu apenas três obras, lançadas ainda em vida: Cenas de Abril, Correspondência Completa e A teus pés. Após sua morte, foi lançado Inéditos e dispersos.

Não se pode afirmar que a morte, ou sua contemplação, se torne mais bonita no universo literário, mas o modo como essas mulheres tratam a palavra e os temas que elas elegem, nos fazem pensar o quanto o transitório é um signo cuja regência nos habita e talvez só a palavra nos salve, ou nos eternize. No caso delas, morrer é estar vivo perpetuamente, seja nas imagens dos versos, seja no espanto de lucidez de quem salta do muito alto com a certeza de que o que virá não tem volta.




terça-feira, 7 de agosto de 2007

Meu narcisismo exagerado


"é que Narciso acha feio o que não é espelho" ( Caetano Veloso )


Uma moça, muito inteligente, estudante de Psicologia, ao ler um texto meu escrito aqui, me falou que ficou impressionada como falo de mim neste blog. Bom, talvez eu não tenha lido o Manual de como usar Blogs, mas imagino que eles sirvam para, entre outras coisas, falarmos de nossas impressões, repressões ou depressões. Ou será que terei que falar sobre o peito de Galisteu? Bom, psicólogos e estudantes de Psicologia, salvem-me, pois vou me afogar no meu narcisimo...
E por falar em psicólogos, encontrei ao acaso um frase de Nietzsche lá no Crepúsculo dos ìdolos e que diz:
" O psicólogo precisa abstrair-se de si, a fim de que seja acima de tudo capaz de ver."
Gostei dessa. Adoro os piscólogos, especialmente meus amigos psicólogos, sobretudo os psicanalistas. Ao pensar neles, acho que já tenho salvação para meu narcisismo exagerado, e olha que só tenho espelhos no banheiro de casa.
Outra frase de Nietzsche, essa velha conhecida de tão citada por todo mundo. Ela diz:
"Sem música a vida seria um erro. O alemão imagina Deus cantando canções"
Concordo com o filósofo bigodudo, sem música seria um erro, a vida. Aliás, sem poesia também seria um grande erro, a vida.
Por causa disso, da vida, da música e, acima de tudo, da poesia, resolvi pôr um poema que acho de uma beleza imensa, principalmente por causa de sua lucidez quase triste. É de Elizabeth Bishop, uma poeta americana que morou no Brasil alguns anos. Chama-se Uma arte. Aos amigos próximos ele não é novidade, pois sempre mando este texto para eles.
Ei-lo:
Uma arte

Elizabeth Bishop

A arte de perder não tarda aprender;
tantas coisas parecem feitas com o molde da perda
que o perdê-las não traz desastre.

Perca algo a cada dia.
Aceita o susto de perder chaves,
e a hora passada embalde.
A arte de perder não tarda aprender.
Pratica perder mais rápido mil coisas mais:
lugares, nomes, onde pensaste de férias ir.
Nenhuma perda trará desastre.

Perdi o relógio de minha mãe.
A última,ou a penúltima, de minhas casas queridas foi-se.
Não tarda aprender, a arte de perder.
Perdi duas cidades, eram deliciosas.
E,pior, alguns reinos que tive, dois rios, um continente.
Sinto sua falta, nenhum desastre.

- Mesmo perder-te a ti (a voz que ria, um ente amado), mentir não posso.
É evidente:a arte de perder muito não tarda aprender,
embora a perda - escreva tudo! - lembre desastre.

Em breve vou postar mais poemas, não só dela, mas de outras tao grandes quanto e que talvez imaginassem Deus fazendo poesias.
Agora vou-me pois tenho que contar quantas vezes pus a palavra "eu" neste texto.

domingo, 5 de agosto de 2007

A saudade é Brigitte Bardot


O RIO

(Manuel Bandeira)
Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas no céu, refleti-las
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.


Um dia desses, falando com uma amiga, a quem prezo muito, falei que não sentia saudade de nada, nem de pessoas, nem de acontecimentos, nada...De fato, sem sentimentalismos de novela das 8 ou o peso dos angustiados filmes “pra dentro”, não sou saudosista. Ela riu, como muitos dos que ouvem eu falar isso, e me disse que isso é defesa. Freud ou Lacan explica. Achei e ainda acho até engraçado quando me dizem isso, pois cada um que me ouve dá uma interpretação distinta dessa minha declaração: uns acham que quero me defender e sofrer menos pelo que já foi, outros me julgam frio demais. Frio demais? Rio mais ainda. Se escolhesse as opções anteriores, a primeira talvez coubesse, ou caiba. O fato é que não sinto saudade.

Pensando nisso, lembrei de Heráclito, aquele filósofo pré-socrático que li há eras passadas, já num tempo que não sentia saudade. Vou tomá-lo em minha defesa. Há uma frase desse filósofo na qual ele afirma que “Tudo flui”, o processo de movimento da existência ou da vida ou das coisas é contínuo, num eterno devir, onde nada mais retorna, pois todo e qualquer movimento se lança ao futuro, ao que vem, portanto, ao já citado devir. Essa magnífica fluência é o que, ao meu modo de ver as coisas, nos constrói e nos dá a chance de termos inúmeras possibilidades de sofrermos, gozarmos, quebrarmos a cara, sermos felizes ou só ficarmos na estática situação de ver ou refletir sobre as coisas. No entanto, ainda assim, tudo flui, nada se eterniza.

Talvez nas entrelinhas do entendimento dessa frase de Heráclito a gente imagine ou veja o quanto nos é difícil admitir que falta perenidade nas coisas. Sempre acho que só a arte eterniza. Se quer ser lembrado, faça um poema; se quer ser além-dos-tempos, faça uma música inesquecível, um filme radiante ou conte uma história infame. Caso contrário, o que resta é deixar tudo fluir, como mostra o poema, lindo e eterno, de Bandeira, ao falar do rio. Mais Heráclito, impossível.

Para este filósofo, não só o fluxo contínuo do tempo é fundamental para o movimento das coisas como também a união dos contrários é importante para haver a harmonia, como ele mesmo mostra num de seus fragmentos que chegou até nós: ”o contrário em tensão é convergente; da divergência dos contrários, a mais bela harmonia”. Daí que, no movimento que flui, coisas vêm e vão, nascem e morrem, opõem-se e completam-se, como um rio (mais uma vez essa imagem!) cujas águas não param e, no entanto, ele continua a ser o mesmo rio: “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”,outro fragmento.

Parafraseio Bandeira aqui, em citação ao filósofo das origens, acho que não sentir saudade é ser como um rio que flui, pois o movimento intenso de estar vivo, preencher um espaço na existência do mundo e, sobretudo, ter uma história partilhada, já são coisas suficientes para não se voltar os olhos chorosos ao que já passou. Um cheiro, um perfume, um gesto, uma frase dita ao pé do ouvido ou uma bobagem qualquer falada ou feita por quem a gente ama são coisas as quais devemos celebrar, porque as vivemos, e não lamentar porque já não estão mais aqui.

Às vezes lembro de umas coisas boas, não de minha infância que, apesar de ter sido ótima, quase não lembro de nada, mas de fatos, situações e pessoas, sem tempo ou fase determinados. Fico feliz por saber que vivi isso e que essas pessoas estiveram lá comigo, Mas não sinto falta, afinal o que mais vale não é a eternidade das coisas vividas nos objetos que as têm ( papéis escritos, lenços, flores ressecadas ), mas o que é retido nos desvãos da memória. Se isso é saudade, talvez a sinta. Mas não a vejo como tantos amigos meus a vêem.

Só pra terminar com poesia também, resolvi pôr uma letra (ou seria poema?) de Zeca Baleiro que fala da saudade. Ela se chama Brigitte Bardot e está no disco Líricas, lindo, por sinal, o disco, apesar da versão Charlie Brown Jr...Eis a letra:

a saudade / é um trem de metrô
subterrâneo obscuro / escuro claro
é um trem de metrô / a saudade
é prego parafuso / quanto mais aperta
tanto mais difícil arrancar
a saudade / é um filme sem cor /
que meu coração quer ver colorido
a saudade / é uma colcha velha
que cobriu um dia / numa noite fria
nosso amor em brasa / a saudade
é Brigitte Bardot / acenando com a mão
num filme muito antigo.




quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Que ainda virão!


Tenho ouvido Marina esses dias. Além de ouvir as coisas que sempre ouço, novidades, descobertas de sons antigos, cd’s que acabei de comprar, sempre pego algum disco que tenho dela aqui e lá vou eu ouvi-la. Para mim não é só o que a música diz ali, mas o som dela me fala mais ou me faz ouvir mais do que as letras supõem. Eu me explico.

Sou de uma geração que cresceu ouvindo Marina. Tenho 34 anos bem fechados e, apesar de não saber se bem vividos, sempre costumo dizer que sou um autêntico filho dos anos 70 que passou ao largo dos 80 e que viveu, de fato, a vida nos anos 90. De fim do sonho setentista, passando pela deprê do horror nuclear dos 80 até chegar ao “tô nem aí” do hedonimso noventista e 00, passei cada um desses períodos meio que tocando cada uma das coisas que o tempo trazia ou, simplesmente, as observando, porque isso sei que faço bem.

Mas onde entra Marina nisso tudo???

Me explico de novo.

Marina surgiu no fim dos anos 70 e estourou nos 80 como um modelo da mulher jovem, bonita, sensual, com olho pintado e juba de leoa. Me desculpem essa descrição um tanto lugar comum, mas ela bate com a realidade porque ela, Marina, foi intitulada, à época, talvez sacada de gravadora para vender imagem, como a Marina Gata. De fato era, e ainda é, mas ela soube ser inteligente o suficiente para romper isso logo logo.

O interessante é que, nessa época, minha geração já ouvia, de longe, os hits dessa moça. Eram solares, juvenis e iluminavam bem aquele período em que o Brasil estava saindo da noite escura, que foi a era da ditadura militar, para uma fase de liberdade e democracia. Foi nessa época também que o rock nacional começou a produzir aquilo que se tornou as grandes bandas da época: Legião Urbana, Paralamas, Titãs, Ira, essa última a única a não se tornar uma banda de velhos senhores sisudos e caretas. A Legião soube acabar a tempo. Ainda bem.

Nesse painel super colorido, viver no Brasil, ou no mundo, era, aparentemente, mais fácil. A impressão é que todo mundo era jovem e que a vida era para se curtir, sim. Eu só via Fantástico e estudava, ah sim, e colecionava, como podia, meus discos de rock inglês. Tinha uns 12 ou 13 anos e observava o movimento do pessoal mais velho que eu, ouvindo muitas coisas boas e outras nem tanto e, acima de tudo, a fim de se divertir.

Lógico que Marina estava lá, com seus hits igualmente jovens e solares. Seus temas, nessa época, eram assim também, pois falavam de amores felizes, paquera e praia num Rio de janeiro certamente mais bonito e menos triste que hoje. Ou quem não se lembra do “todas de bundinha de fora” daquele sucesso pegajoso ? Essa música estava em um dos melhores discos dela, na minha opinião, que pertencem a esta fase sol e juventude. O disco se chama Virgem e a música de mesmo nome é a que abre este disco. Essa música, outro hit da época, mostrava alguém numa situação de acerto de conta amoroso: “as coisas não precisam de você / quem disse que eu tinha que precisar?”

Certeira na segurança de si, essa letra dava o tom de uma autonomia amorosa sem igual, prezando certamente a liberdade disponível quando se tem mais que 20 anos para experimentar as coisas e menos que 40 para escolher o que se quer ou temer tudo o que é não é seguro. O fato é que as letras de amor de Marina sempre refletiram, assim imagino, as fases de sua vida. E acabaram refletindo, talvez sem ela se dar conta, as fases da vida de toda essa geração que cresceu exatamente como eu, entre a decisão de ser gente grande e livre e o temor de crescer num mundo cada vez mais difícil.

Marina parece saber bem disso. Seus discos posteriores passaram a mostrar uma mulher mais madura, mais frágil e, às vezes, mais espantada com a passagem do tempo. Cada disco que era lançado era uma fase nova sendo exposta ali. Na mesma proporção que ela, sabiamente, foi deixando para traz sua face solar e gata de cabelos cheios e olhar sedutoramente desafiador, foi se mostrando mais sofisticada com um refinamento que ia das letras, muitas assinadas pelo irmão filósofo-poeta, até a concepção de capa e encarte.

Isso acabou criando um conceito, pelo menos para mim, de como um artista não se entrega à caretice geral nem faz concessões a nada. Paga-se um preço alto por isso, às vezes, mas pelo menos se garante a autenticidade. E são autenticidade e verdade pura que vejo e ouço nos discos que chamo de fase madura ou introspectiva que ela se lançou. Alguns diriam que triste, mas sinceramente não sei se é assim. O que sei é que tais discos mais uma vez dão o tom de minha geração, essa mesma que dançava nas festas adolescentes dos anos 80 querendo ser Robert Smith e que hoje está aí, tão introspectiva e talvez com alguma esperança como os discos de Marina nos faz ver.

Então vejamos.

Já em 91, no encarte de um disco que levava apenas seu nome, já com o sobrenome Lima, ela fazia um balanço de sua vida, aos 35 anos, e encerrava o texto, curto, dizendo que ter esta idade neste ano não era nada ruim. Neste disco já se notava uma sutil mudança em seu som e nas letras também, talvez já pela presença de um novo parceiro, Alvin L, que lhe deu a melancólica e definitiva Não sei dançar. Agora o recado está dado: mudanças estão por vir. E essas mudanças já se mostram no disco seguinte cujo titulo, O Chamado, já prenuncia uma Marina vivendo as perdas comuns a quem está vivo, como ela sinaliza no texto que acompanha o encarte, ao lado de citações de Saramago, Nietzsche e Joseph Campbell.

Neste disco, como em outros que viriam, as letras trazem temas como solidão, avaliação de relações e amores, é lógico, afinal quem não ama ou sofre por amor? Mas algo já se vê de diferente. Se em Virgem, há acertos de contas, em canções como Deixe Estar ou No Escuro, de, respectivamente, Pierrot do Brasil ( de 98) e Setembros ( de 01) os temas giram em torno de perdas e partidas.

Essas perdas já haviam produzido estragos mais físicos, pelo menos até onde se sabe, pois no disco de 96, Registros à meia voz, há faixas instrumentais talvez devido ao problema na voz que a acometeu e que parecia ser outra redefinição em sua carreira. Neste disco, com uma bela capa em azul, as melodias são sofisticadas com uma sonoridade que não lembra em nada a Marina Gata dos 80’s. E isso é ruim ou bom? Nada mais do que fugir desse maniqueísmo, pois ela, mais uma vez, se expressa inteira e, sem saber, espelha a mesma sensação de muitos brasileiros da época, pairando entre a desconfiança e alegria da era FHC e correndo atrás de como ser gente grande diante de tantas crises, econômicas, políticas e pessoais. Desta fase de perdas e acertos, destaco um disco que, na minha opinião, é um dos melhores da MPB. Seu nome? Pierrot do Brasil.
Produzido pelo iuguslavo Suba, que morreu tragicamente sem antes nos dar um disco de sua autoria, São Paulo Confessions, e a produção do belo Tanto Tempo de Bebel Gilberto, o Pierrot mostra uma sonoridade moderna sem ser afetada e uma sutileza nos sons eletrônicos que o fazem uma obra quase atemporal. Quem o ouviu sabe do que falo.

Mas o que quero chamar a atenção aqui é dos temas deste disco. Mais uma vez a euforia do início da carreira e a visão solar do mundo dão lugar a uma jovem senhora, já pós-balzaquiana, que encara a vida com a idade da madureza e, nem alegre demais nem triste que nos entristeça, faz um saldo das relações humanas, especialmente as amorosas, como se fossem as de todas nós.

Isso faz de Pierrot ser especial, mas não só por isso, afinal quase todas as letras ou são ajustes sentimentais, como em Na Minha Mão, ou revisão de sentimentos, como na já citada Deixe Estar e em Portos e Vinhos. Mais belo que isso só aquelas outras presentes em Setembro, disco mais arejado e feito em casa, com os bits e tóins do Pierrot, ou no último, Lá nos Prmórdios, onde, numa faixa, Que ainda virão, na minha opinião uma das melhores dele, ela nos diz que “o sol brilha no azul / que aponta novos caminhos / quem sabe logo virão /me achar “.

Essa retomada, presente neste disco, é a mesma que muitos de meus partners de geração ainda hoje estão fazendo, ora alegres, ora menos sorridentes, mas certamente mais amadurecidos pelas perdas e conquistas que este tempo nos deu. A trilha sonora disso tudo? Bom, a minha é extensa, e acredito até que descontínua, mas sei que muito do que essa mulher cantou acompanha esse meu amadurecimento. Disso não tenho dúvidas. Ouçam Marina, quarentões, trintões e oitentões...e saberão do que falo.




Brasil+Cuba= Marina de La Riva


Li há algum tempo na Rolling Stone – Brasil uma matéria curta sobre uma moça que estava fazendo um disco de influências cubanas. Depois, na Vogue Brasil, li outra matéria sobre esta mesma moça. Me liguei. Baixei umas músicas dela, só três, porque estava meio difícil de encontrá-la, e ouvi as três espantado com o som, com a voz e com a melodia. Não que seja algo tão inovador que embasbacasse, mas talvez o espanto fosse por ser tão simples e tão claro que só por isso mesmo já valia o espanto, o deleite e o embasbacamento.

Sou assim, descubro essas musas e depois fico ali, ouvindo, lendo a respeito, curioso para saber tudo delas. Minha nova musa se chama Marina, outra, não aquela que já fiz até um texto em sua homenagem. Essa tem como sobrenome La Riva e é filha de pai cubano e mãe mineira. Tem uma voz suave e conseguiu pôr no seu disco uma mistura de elementos brasileiros com tons cubanos ( ou o inverso ) sem soar forçada.

Em seu disco, se ouvem desde clássicos do cancioneiro da Ilha, como a já famosa Drume Negrita, eterna na voz de Bola de Nieve e na de Caetano, ou o Adeus, Maria Fulô, de Sivuca, e que foi gravada até pelos Mutantes. Com Marina, esta canção começa como um baião meio safado e ganha um enxerto lírico de uma canção de Lecuona, chamada La Mulata Chancletera. O que poderia resultar como uma forçação de barra em ligar músicas de aparência díspar, termina por confirmar a base de todo o disco: mostrar que a música de língua espanhola pode, sim, dialogar com a brasileira e brotar beleza de tudo isso.

Falei aqui apenas destas, mas há outras igualmente belas, como o arranjo de um sutil samba de roda, entre palmas, violões e percussão leve, para Sonho Meu, pérola de Dona Yvone Lara, já cantada por Bethânia e Gal. A beleza aqui se sobressai pela delicadeza da voz, pelo arranjo que valoriza a interpretação e pelo final, no qual Marina de La Riva recita um poema curto e muito delicado de Jose Marti, figura importante na cultura cubana. Em breve posto coisas que ele escreveu. Ainda há uma regravação para uma canção de Silvio Rodriguez, que fecha o disco e que abre o site desta moça: Te amaré e después. Não é à toa que ela está em partes importantes do disco e do site, pois esta canção é linda e em sua voz, acompanhada apenas pelo piano de Pepe Cisneiro, ganha contornos de grande beleza, só para provar que uma grande canção não precisa de muita firula.

Talvez eu esteja exagerando, afinal paixões são assim, nos cegam, e eu estou encantado por essa moça. Já havia um tempo que estava disposto a redescobrir o cancioneiro latino espanhol e os discos de Caetano, como Fina Estampa, eram um bom caminho, assim como os boleros e guarânias que ouvia, buscando coisas na net ou aqui em casa, com meu cd de Nat King Cole cantando em espanhol ( uma beleza, por sinal, tão belo que até entrou naquele filme nota 1000 de Wong Kar Wai, o Amor à Flor da Pele). Marina de La Riva só veio a acentuar esse desejo. Que ele dure, assim como a beleza de tê-la ouvido ao longo desses dias sem rumo. Ave, Marina de La Riva!!

Quem quiser conhecê-la mais, entre no seu site:

www.marinadelariva.com.br